Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 15, 2006

Jânio de Freitas - Os dois avisos





Folha de S. Paulo
15/8/2006

É hora de que o anticrime seja levado a sério e procure reelaborar suas idéias, sair da velha e inútil obviedade

A conclusão , exposta por jornalistas e vários entrevistados, de que, ao seqüestrar um repórter, o crime em São Paulo "subiu de patamar", só se explica como um desses maus momentos a que as pessoas estão sujeitas. E que são comuns em jornalistas quando o infortúnio inverte os papéis e põe um de nós no lugar da vítima. Invocam-se então a liberdade de trabalho, a inocência da vítima, a violência covarde e outras verdades não menos gritantes. Mas, na essência, as verdades que envolvem o jornalista vitimado em nada se distinguem das transgredidas na grande maioria das outras vítimas: o turista esfaqueado para roubo, o motorista incendiado com o ônibus, o dentista assassinado pela polícia "por engano", a criança morta por "bala perdida" - consta serem assim 50 mil por ano no Brasil, mas o número parece modesto.
Há muito tempo os seqüestros se sucedem, ora mais, ora menos freqüentes. No caso de São Paulo, até como principal característica da criminalidade. O seqüestro de um repórter nada acrescentou, por si, aos seqüestros de outras vítimas. A troca do resgate por uma nota para divulgação -finalidade que não precisava de seqüestro, por certo seria obtida com a simples distribuição da nota- esta, sim, sugere duas observações aparentemente ainda atuais.
O seqüestro absorveu mais atenção do que a insípida nota e, nela, atentou-se mais para o exigido fim do "regime disciplinar diferenciado". Nisso ficou quase perdida a frase de importância capital: "não ficaremos de braços cruzados pelo que está acontecendo no sistema carcerário". Os bravos secretários do governo paulista, bem à sua maneira, podem tomar a frase como desafio ou como bazófia, mas para os demais vale por um aviso geral de necessárias precauções contra ataques que já se provaram factíveis.
A outra observação vem do momento escolhido para o seqüestro e sua finalidade. Da Folha de sábado: "Folgas cassadas de quase 100 mil policiais militares e 30 mil policiais civis, helicóptero do Exército usado pela PM, [...] blitze nas ruas. É com esse cenário de guerra, preparado pelas forças de segurança" [...]. Assim foi feita, para o fim de semana, a devida prevenção do crime articulado. E, no entanto, houve o seqüestro. Ou seja, uma outra mensagem: o nível a que a criminalidade chegou em numerosas cidades exige muito mais do que pôr as polícias e mesmo o Exército na rua. Esse é um ensinamento que o Rio tem difundido em vão. É impossível policiar toda a cidade, é impossível impedir que o crime conte com os vazios inevitáveis do policiamento e com o imprevisto.
O crime se sofisticou no armamento e aprimora métodos, como demonstrou o seqüestro do repórter com o uso e troca de dois carros, incêndio de um para eliminar vestígios, batedor de moto. É hora de que o anticrime seja levado a sério e procure reelaborar suas idéias, sair da velha e inútil obviedade. Essa é uma dívida que os intelectuais, os acadêmicos e a mídia têm com o país.
Do episódio ficará a perfeita atitude da TV Globo no dever de proteção à vida do seu repórter.

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