Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 06, 2006

Guerra amplia a separação entre o Islã e o Ocidente - Estado

Professor diz que Israel e o Hezbollah se deixaram
levar a uma armadilha que pode acabar beneficiando os radicais islâmicos

Reali Júnior, CORRESPONDENTE, PARIS

Uma das principais conseqüências da guerra no Líbano será o agravamento do divórcio entre o mundo islâmico e o mundo ocidental, o que nos aproximará mais do "choque de civilizações". Essa opinião foi manifestada em entrevista ao Estado pelo professor Dominique Moisi, diretor do Instituto de Relações Internacionais de Paris, especialista em política internacional e antigo professor da Universidade John Hopkins de Bolonha e da Universidade Harvard. Hoje Moisi é também professor do Instituto de Ciências Políticas francês e editorialista do jornal britânico Financial Times.

Quais são as conseqüências dessa guerra para o mundo?

Sem dúvida, uma delas será o reforço do divórcio entre o mundo islâmico e o mundo ocidental. Isso vai nos conduzir cada vez mais a um conflito de emoções. A cultura do mundo islâmico aparece cada vez mais em luta contra o mundo ocidental. Isso nos aproxima um pouco mais do que previu o professor americano Samuel Huntington, autor do livro Choque de Civilizações.

E o impacto nos demais conflitos regionais, o Iraque, a crise nuclear com o Irã e o conflito palestino?

Faz parte do conjunto. Tudo isso evolui de forma negativa em todos os níveis. Estamos mais longe da paz em Israel e mais próximos da guerra civil no Iraque, e o Irã, sem dúvida, mais perto da arma nuclear.

Mais uma vez estamos assistindo à divisão do mundo ocidental diante de uma grave crise internacional. Os EUA pró-Israel, a França pró-mundo árabe e a União Européia dividida entre a participação da Síria e Irã nos esforços diplomáticos. Sem falar da ONU e suas limitações. Como analisa a divisão?

Não concordo com essa apresentação da França, pois ela não considera que está hoje ao lado do mundo árabe. Tem definido sua posição dizendo que está ao lado do Líbano. Pretende contribuir para restaurar a soberania desse país e interromper o sofrimento dos libaneses por meio de um cessar-fogo imediato. Para a França, solicitar um cessar-fogo não significa ser pró-árabe, nem pró-israelense.

De qualquer forma, assistimos à França se aproximando do Irã e admitindo que este participe das negociações diplomáticas, mas vetando a Síria, ao contrário dos demais países da União Européia. Todos eles defendem a participação dos dois e não apenas de um?

Para compreender bem a situação é preciso citar outros fatores. O primeiro é que depois do assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafic Hariri pelos serviços secretos sírios a França praticamente não tem relações com o regime sírio de Bashar Assad. Quanto ao Irã, há a antiga tradição francesa de manter fortes laços com regimes radicais e a crença de que se os EUA podem impor um cessar-fogo a Israel, o Irã pode impor um cessar-fogo ao Hezbollah. Talvez a França possa convencer o Irã a seguir a via diplomática.

Também em Israel vemos uma divisão interna entre os falcões e os realistas sobre os rumos dessa guerra e suas motivações. Muitas pessoas não estão convencidas de que a captura de dois soldados israelenses possa ter deflagrado uma guerra de tal natureza.

Em primeiro lugar, devemos analisar a motivação do Irã. Esse país pretendeu, inicialmente, desviar a atenção internacional na véspera da cúpula do G-8 e utilizar a ação militar do Hezbollah contra Israel como um outro meio, mas com o mesmo objetivo. Outro fator é o desejo de afirmação do chefe do Hezbollah, o xeque (Hassan) Nasrallah, que aparece como líder da resistência a Israel no mundo árabe. Em contrapartida, influiu o desejo dos israelenses de aproveitar a ocasião para enfraquecer consideravelmente o Hezbollah. Em minha opinião, houve uma sucessão de erros de cálculo das duas partes. Cada um se enganou sobre o outro. O Hezbollah não imaginava que os israelenses fossem responder tão maciçamente e os israelenses não pensavam que a resistência do Hezbollah fosse tão grande. Houve uma espécie de armadilha em que os dois caíram.

Insisto na pergunta sobre as verdadeiras razões do conflito, que continuam obscuras. Afinal, elas poderiam justificar uma guerra tão violenta e destrutiva?

Os israelenses se sentem ameaçados, não só pelo Hezbollah ou o que ele possa representar como ala radical do Islã, mas também pelos palestinos com a vitória do Hamas, ambos preconizando o desaparecimento do Estado de Israel. Daí o objetivo de Israel de enfraquecer militarmente os radicais. Mas o resultado talvez seja o inverso, isto é, os radicais se fortalecerem no mundo árabe. Quando a guerra começou, o Hezbollah parecia relativamente isolado. Depois da tragédia do bombardeio da vila de Qana, ocorre o inverso. Hoje, mesmo os cristãos do país, que se mostravam mais distantes do Hezbollah, se sentem mais próximos emocionalmente.

Assistimos a um novo revés da ONU, incapaz de encontrar uma saída para essa nova crise?

Acredito que a ONU atravesse uma grave crise que pode ser traduzida pelas divisões em sua cúpula, especialmente no Conselho de Segurança (CS), que a impede de funcionar. Se o país mais poderoso do mundo, os EUA, se opõe aos demais membros do CS, a ONU permanece paralisada. Vão ser necessários ainda muitos dias antes que um cessar-fogo possa ser imposto. A ONU não tem condições de superar essa contradição.

Mesmo se tornando militarmente vencedor da guerra, do ponto de vista político, a imagem de Israel não sairia fortemente abalada desse conflito, após a destruição da infra-estrutura do Líbano, do deslocamento da população do país e de tantos mortos inocentes?

Sim, mesmo se conseguirmos compreender os objetivos de Israel, a comunidade internacional terá dificuldades de aceitar o preço a pagar pela defesa de Israel. Creio que politicamente o país sairá enfraquecido, algo que o Hezbollah pretendia desde o início.

Isso poderia ter repercussão também na imagem dos EUA?

Ainda é muito cedo para que se possa interpretar isso. A guerra não terminou e muita coisa pode acontecer. Se a guerra terminasse hoje seria, sem dúvida, uma vitória simbólica para o Hezbollah, o que os próprios israelenses admitem, pois esse grupo teria sobrevivido às ofensivas de Israel.

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