Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 22, 2006

Arnaldo Jabor - As coisas não param de 'desacontecer'




O Globo
22/8/2006

A crise das instituições públicas vai para lá de Bagdá

Amigos, este artigo está um bode, não sei se a culpa é minha ou do tempo em que vivemos, mas... vamos a isso.
Hoje em dia, só presenciamos desacontecimentos. No mundo as coisas, ainda que negativas, acontecem; aqui, giram no mesmo lugar. Lá, as coisas vingam; aqui, murcham logo depois de uma bruta florescência. Nas notícias de jornal só há coisas que "não" aconteceram: "não" termina a greve, "não" puniram os responsáveis, 'não' conseguiram isso, nem aquilo. Nossas notícias são narrativas de fracassos. Não há nada no ar, a não ser a inevitável reeleição do Lula, para completar seu "ciclo viral" de vida. De resto, faltam vento no peito, cor no rosto, tesão, adrenalina na alma. Somos uma sopa onde flutuam as eternas colunas sociais, com os sorrisos e as bundas nuas, as velhas madames e as novas peruas, os crimes, as balas perdidas, as revoltas nas prisões.

Já vivi épocas de cores mais vivas. O pré-64 era vermelho, não só pelas bandeiras do socialismo, mas pelo sangue vivo que nos animava a construir um país, romanticamente. Era ilusão? Era. Mas tinha gosto de vida. E a ditadura de 64, aquele verde-oliva que nos cercou como uma epidemia de vil patriotismo? Era terrível? Sim. Mas nos dava o frisson de lutar contra o autoritarismo ou de sermos "vítimas" das porradas da História. Já passei pelo céu cor-de-laranja da contracultura, pelos depressivos anos cinzentos de Sarney, passei pelos rostos amarelos e verdes do impeachment, pelo azul da esperança do Plano Real. E hoje? Qual é a cor de nosso tempo? Cor-de-burro-quando-foge. É a cor morta dos desacontecimentos. A pós-modernidade (arrghh!) no Brasil não tem o gosto cínico de um tempo cru, é apenas uma cobra mordendo o próprio rabo, um beco sem saída, uma galinha morta.

Somos tecnicamente uma "democracia", mas os brasileiros não entendem bem esta palavra. A democracia no Brasil é vivida como porta aberta para todos os oportunismos, pois a "cana" é menos dura... Democracia no Brasil é uma ditadura de picaretas. O povão prefere um autoritarismo populista, e os intelectuais sonham com um socialismo imaginário. Utopia e burrice reelegerão o Lula, adiando mais a agenda de nossas reformas urgentes, essenciais.

Os escândalos parecem acontecimentos, mas são a reafirmação da paralisia. O Brasil gira em volta de si mesmo, vai e volta, vacila, ganha tempo. Nos USA, tempo é dinheiro; no Brasil, a lentidão é a mola mestra do atraso.

O impeachment do Collor ao menos foi um projeto, com jovens nas ruas - que lindo, o povo unido!... E agora? Nenhum desespero e nenhuma esperança. Intelectuais dizem: "Voto de novo no Lula, mas ninguém precisa me seguir..." Votam por misticismo, para não fazer marola no marasmo. Nossa chance de modernização vai virar um "chavismo cordial", Lula paralisado com Sarney.

E tudo isso dentro de um mundo também girando no nada. O mundo destruído pela estupidez do Bush, essa anomalia com um trilhão de dólares em armas, em nome da liberdade.

Que liberdade? Para ser contra a guerra? Tanto faz, pois a guerra já está decidida por um dos poucos "eus" do mundo: Bin Laden, para quem a guerra já é uma vitória. O "indivíduo", os desejos das massas ficaram ridículos. Ninguém decide mais nada. Quem manda é o desejo das coisas e das corporações. Todos falam em nome do "eu", mas não há mais sujeitos da História; só objetos.

O "eu" está sem orgulho, inútil. O único consolo que resta ao "eu" é a acumulação de riquezas, charmes e ilusões. Seria o "eu-burguês", ou "eu-Miami". Ou, então, o "eu" como prêmio para quem furar o muro do anonimato, para quem conseguir criar um "eu-celebridade", um "eu" excêntrico, um "eu" que mostra a bunda, um "eu-silicone" ou um "eu-big brother". O homem-bomba matou o Eu.

Bin Laden usou a fanática fé de seus suicidas e atacou justamente a terra que cultiva o "eu". Os USA não perdoam a imaginação de Osama, o "estelionato estratégico" que ele executou. Osama foi competente e prático como um... americano. Osama fez um filme-catástrofe melhor que Hollywood. O WTC foi o primeiro grande acontecimento do século XXI. Agora, só temos suas conseqüências e estupidez dos neoconservadores, numa circularidade viciosa.

Está feia a coisa. Estão se juntando as cabeças do apocalipse: a grande ruptura - Hezbollah, Irã, Síria, iraquianos, afegãos imbecis quebram a banca do racionalismo ocidental. Quantos malucos de camisola medieval não estarão agora preparando bombas de antrax para soltar na Broadway? Há a sensação de que uma coisa espantosamente óbvia está finalmente aparecendo. Temos de nos conformar: não há mais solução para muitos impasses no mundo. Não há solução racional para o Oriente Médio, não há solução lógica para a África. E haverá solução para a violência aqui? No caos não há eventos. Para haver acontecimentos, tem de haver uma normalidade a ser rompida. Mas nada acontece, pois a anormalidade ficou "normal". Há uma loucura acumulada no mundo que está vindo a furo. No Brasil também - a farsa institucional está caindo e deixando o país entregue aos cachorros, com as contradições explodindo como granadas. Estamos à beira de grandes absurdos irracionais

Ao final do século XX, tínhamos a esperança na utopia tecnológica, na eficiência americana, que nos salvaria das doenças, das catástrofes, e nos daria conforto, justiça e lazer. O capitalismo nos prometia que o "mal" seria combatido pelo bom funcionamento dos equipamentos. Até isso dançou. O ataque dos islâmicos contra o WTC, as trapalhadas inacreditáveis no Iraque e Palestina desmoralizaram a competência ocidental. A globalização ironicamente serviu para os medievais do Oriente usarem o progresso tecnológico para impedir o progresso.

As catástrofes de hoje são defeitos de funcionamento. Assim como as máquinas de lavar quebram, assim caem os aviões. Assim morremos. E pensar que tudo começou com os espermatozóides do Clinton que elegeram o Bush e com a criatividade sinistra de um louco sujo do deserto. "Something wicked this way cometh" (Shakespeare). Tradução: "Vem merda por aí!..."

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