Primeira Leitura
Fiz uma lambança dos diabos no texto de ontem. Decidi chamá-lo Autopsicografia numa referência ao texto mais famoso de Fernando Pessoa, aquele do “poeta fingidor”, a que faço alusão logo no primeiro parágrafo. Comecei a escrever pensando no soneto Versos Íntimos, de Augustos dos Anjos, e pimba! Não sei por quê, escrevi que o poema se chamava Autopsicografia, que remete, sim, ao tema central do artigo: o fingimento literário. Já corrigi a besteira — não para escondê-la, mas porque essas coisas ficam em arquivo, e não quero que ninguém venha a ser vítima do meu erro. Corrigi e vim aqui me chicotear. Posso errar no pensamento, mas não costumo fazer besteiras como aquela. Embora não seja a primeira de que me envergonhe.
Recebi como brinde de uma empresa, certa feita, um desses blocos de anotações que tinha um lema subscrito: “Não confie na memória. Anote”. Considerei aquelas palavras uma incitação à preguiça mental. Nada tenho contra as anotações, é claro. Mas o imperativo “não confie” me parecia um convite a que desconfiássemos permanentemente de nós mesmos. Ocorre que não foi uma falha ou confusão de memória. Eu simplesmente não me dei conta da bobagem; ignoro a sua gênese. Até porque o Google está aí para quem quiser consultá-lo em caso de dúvida. As páginas que aparecem também trazem erros em penca, mas quase sempre há uma fonte confiável, e temos à mão ou nome ou data sem que precisemos levantar o traseiro da cadeira.
Um leitor, petista quero crer, que costuma me esculhambar, já mandou bala: chama-me de “ignorante” para baixo e pergunta se não me envergonho de chamar Lula de “apedeuta” depois dessa. “Apedeuta é você”, crava ele. Não, Silvio. Envergonho-me é do erro. Quanto a Lula: “Apedeuta, apedeuta, apedeuta!”. Eu, ao menos, penitencio-me pelas minhas bobagens e sofro por causa delas. Sim, por alguns dias, não darei “Bom dia” sem antes me certificar se o dia está realmente “bom”. Mas é fato que meu texto e meu estilo se fazem, em boa parte, de associações que vão sendo ditadas pela memória. Só uso aspas quando a citação é literal Quase sempre me fixo no sentido geral do que disseram este e aquele. Se for parar para pesquisar cada referência, não sai texto nenhum.
No passado
Todos temos livros que prezamos, ainda que não nos sirvam de guia ou até expressem conceitos que repudiamos. É o caso de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx. Não posso jurar que o tenho decorado, mas fico bem perto de um quase. Não sou marxista, mas acho esse livro fascinante como aplicação de um método de análise da história, ainda que não seja, como não é, o meu. Certa feita, em 1996, eu era coordenador de Política da Sucursal de Brasília da Folha, e o então ministro Sérgio Motta citou um trecho da obra. A repórter enviou-me a matéria e, quando percebi a referência, acrescentei ao texto que o tucano aludira ao “18 Brumário de Luís Napoleão” (!!!). Recentemente, num livro escrito por um jornalista (profissão maldita!), encontrei o erro repetido.
Por uma dessas razões que jamais saberemos explicar, algo me advertiu, em casa, de que eu havia feito a besteira. Nada a fazer. Imaginava os jornais sendo cuspidos pela máquina, reproduzindo o erro aos milhares e, o que é pior, com a assinatura de uma terceira pessoa. Para mim, qualquer besteira era admissível, menos aquela. A razão de ser do título, de se falar do “18 Brumário de Luís Bonaparte”, e não do de “Napoleão”, resumia justamente a grande sacada de Marx, que virava Hegel de cabeça para baixo: a história só se repete como farsa, e o sobrinho (Luís) era a farsa do tio (Napoleão).
O erro me humilhava porque era um livro que eu conhecia profundamente e porque, bem, eu depredava, com a confusão, seu centro nervoso teórico. A Folha dispõe da seção “Erramos”, e a correção foi feita. Numa edição de vários “erramos” feita pelo Controle de Erros, lá estava o meu. Cada um deles merecia uma recomendação. No meu caso, a sugestão era que se evitasse falar de obras sem o devido conhecimento. O jornal fez muito bem em não deixar passar.
Desculpo-me com os leitores. A coisa de que mais gosto no texto de ontem é aquela distinção entre prosa e poesia, por que as utopias podem ser muito perigosas, o que há de bom em reinventar o passado. Mas tudo ficou um tanto obscurecido pela besteira. Ao fim deste texto, publico os e-mails dos leitores que perceberam o erro. E também republico, como não poderia deixar de ser, os poemas Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, e Autopsicografia, de Fernando Pessoa.
Encerrando
Participei, com o meu chapéu, da gravação de um programa Roda Viva nesta quinta, que vai ao ar na próxima segunda. O entrevistado é o português José Manuel Durão Barroso, conterrâneo de Fernando Pessoa (autor de Autopsicografia...), presidente da Comissão Européia e ex-primeiro-ministro de Portugal. É um homem inteligente e simpático. Foi maoísta na juventude e hoje pertence ao PSD, um partido que ele mesmo classifica de “centro-direita”. Na Europa e nos EUA, pode-se falar “direita” sem que se confunda o termo com palavrão. No Brasil, como somos mais avançados, todo mundo se diz de centro-esquerda...
Falo disso porque meu chapéu estréia em rede nacional e porque, ao fim do programa, um amigo brincou: “Pô, a retirada dos tumores não te levou pra esquerda nem um pouquinho, né?”. Pois é, não levou. E nem pode responder pelo erro de ontem ou por outros que eu venha a cometer. Prefiro assim: o mundo é melhor quando a gente não tem desculpa.
O QUE DISSERAM OS LEITORES
Prezado Reinaldo,
Acho que o soneto de Augusto dos Anjos chama-se Versos Íntimos. Foi uma das poesias que decorei durante o segundo grau (gosto muito desta). Pesquisei no Google e não encontrei uma cópia com outro título (poderia buscar o livro dele, intitulado Eu, que deve estar em uma das minhas caixas de livros, mas deu preguiça). No mais, desejo-te tudo de bom e que tudo siga bem na tua recuperação. Abraço,
Everson
Não seria Versos Íntimos?
Djan Krystlonc
Caro Reinaldo,
No meu livro, Eu e Outras Poesias de Augusto dos Anjos, esse poema tem o nome de Versos íntimos.
Que bom ver vc de volta!
Eliane Moura
O poema do Augusto dos Anjos se chama Versos Íntimos, cretino. Não se envergonha de chamar o presidente de apedeuta? Apedeuta é você. E ainda tem a coragem de ficar cagando regra para os outros.
Sílvio Moreira
OS POEMAS
Versos Íntimos
Augusto dos Anjos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Autopsicografia
Fernando Pessoa
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Publicado em 1º de junho de 2006.