FOLHA
Consta no anedotário jornalístico que o genial Assis Chateaubriand, quando jovem, fora convocado por seu chefe para elaborar um editorial para a Sexta-Feira da Paixão. "Quero uma ênfase na figura de Jesus", teria recomendado o editor. O ágil Chateaubriand levantou-se apressado para cumprir a tarefa. Mas, já na porta de saída, lembrou-se de perguntar: "Chefe, sobre Jesus, sim, mas contra ou a favor?".
Editorial que se preza tem que emitir opinião, a favor ou contra. São ângulos da verdade, essa musa diáfana que, como sombra, nos transpõe para escapar do alcance das nossas frágeis percepções. Vivemos de convencimentos construídos, deduzidos do que alcançamos ler na pedra dura de verdades transitórias ou convenientes.
Estamos convencidos, por exemplo, de que o Brasil do penado contribuinte paga uma conta grande pelos erros de avaliação de produtores rurais, que se engajaram na expansão da fronteira agrícola, fazendo a produção de grãos saltar da faixa de 90 milhões para 120 milhões de toneladas. Incorporaram milhões de hectares em áreas novas no cerrado, compraram máquinas e, agora, entalados em dívidas, "choram" ao governo por mais uma rolagem dos débitos, certamente nas costas de quem paga impostos. É uma verdade. Como seria a versão de Chateaubriand se o chefe dele tivesse dito: "Não dê mole para o crucificado..."? Ou se tivesse recomendado: "Polemiza, endossando a versão de Judas, a do National Geographic..."?
O agro tem mesmo contas a prestar ao país. O preço dos alimentos, por exemplo, serviu para segurar o custo da cesta básica, hoje 20% mais baixo em relação ao IPCA de partida do Plano Real. A expansão do agronegócio ainda gerou um superávit comercial agrícola acumulado em US$ 102 bilhões, entre 1997 e 2005. Hoje, o saldo na balança comercial é gerado em 70% pelo profissional do campo.
Se não fosse o "excesso" da produção rural, o câmbio jamais poderia estar, nem com esses juros lunáticos, no piso de R$ 2,10. Quanto seria, então, a taxa de câmbio? Não importa, tanto quanto considerar que, por falta de adequados instrumentos de amarração financeira, e por conta dos ajustamentos de preços relativos nos últimos anos (o preço de óleo diesel, por exemplo, aumentou mais de 60%, em termos reais, no período de 2001 a 2005), o produtor profissional plantou comprando insumos a um certo câmbio e colheu vendendo sua safra a outro câmbio, de 20% a 30% mais baixo.
Essa queda na renda líquida do agronegócio é risco de mercado. Mesmo que saibamos que não estamos sob a "lei de mercado" no Brasil, e, sim, sob a mais terrível manipulação da política de juros e câmbio. "Congelar" o sistema de preços pela via do câmbio é eficaz, cirúrgico e moderno. E, se pudermos fazer isso via juros e contenção da demanda interna, muito mais elegante será, pois o efeito pretendido pelo pensamento oficial se dará sob "condições de mercado".
Mas tal elegância silogística ou eufemística não aliviará as conseqüências de uma próxima crise de produção rural, despejando seus efeitos sobre a estabilidade de preços, tão penosa (e precariamente) alcançada agora.
Tem razão o editorial da Folha da última segunda-feira quando aponta, como causa, a insuficiência de instrumentos financeiros modernos para o agronegócio.
A grande verdade é que o agronegócio brasileiro é como uma grande plataforma globalizada de produção para o mundo inteiro. Só que essa plataforma não "fala" direito com o resto do mundo, pelo ruído de transmissão decorrente de realizar sua produção sob a jurisdição política e econômica deste Brasil. Os ruídos são os piores possíveis. São os preços de insumos totalmente desalinhados da concorrência de fora, o abandono completo das estradas e portos e a macroeconomia madrasta da "moeda forte" brasileira que, desgraçadamente, o próprio produtor ajudou a fortalecer. E, para não falar da falta de apoio a pesquisas, das regulamentações absurdas e do beijo da morte das pragas e ameaças de pandemias como a gripe aviária.
É verdade que a plataforma global do agro brasileiro necessita de fontes de financiamento igualmente globais. O crédito rural, oficial, as renegociações forçadas de débitos, as securitizações oficiais são velharias, já denunciadas desde 30 anos passados.
Nem por isso o Chateaubriand do editorial precisaria ter martelado tão duramente os cravos de Jesus nas pernas e braços do agronegócio brasileiro.
Entrevista:O Estado inteligente
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