São 40 os ladrões de dinheiro público
encastelados no governo do PT e
denunciados pelo procurador-geral.
Isso deixa Lula em uma situação
pior que a de Collor
Em seus dezoito anos de história, o Ministério Público Federal jamais produzira um libelo tão demolidor quanto o divulgado na semana passada. São 136 páginas devastadoras para o Partido dos Trabalhadores e para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com uma linguagem clara e direta, o documento acusa a cúpula do PT de formar uma "sofisticada organização criminosa", que se especializou em "desviar dinheiro público e comprar apoio político", com o objetivo de "garantir a continuidade do projeto de poder" do PT – e denuncia quarenta pessoas, num número que não é mais simbólico (veja a lista completa dos denunciados). É cedo para avaliar o impacto que uma denúncia desse porte poderá ter, e sobretudo seus desdobramentos na esfera jurídica e na política, mas já está claro que, pela primeira vez na história do país, um órgão de investigação independente flagrou um esquema de corrupção de proporções amazônicas encastelado no coração do Estado – um cenário aterrador diante do qual as traficâncias de Fernando Collor e seu tesoureiro PC Farias parecem trapalhadas de principiantes.
Lula Marques/Folha Imagem |
O ESPECIALISTA |
A denúncia do MP, ao descrever a máquina de corrupção que o PT montou dentro do governo, trata seus antigos dirigentes como comandantes de "quadrilha", uma palavra que o procurador, na sua linguagem direta, usa 21 vezes no documento. O ex-ministro José Dirceu é descrito como o "chefe do organograma delituoso". José Genoíno, ex-presidente do PT, aparece como o "interlocutor visível da organização criminosa". Delúbio Soares, o ex-tesoureiro, é o "elo com as ramificações operacionais da quadrilha". Silvio Pereira, o ex-secretário, tinha a "função primordial" de distribuir cargos no governo – de onde saíam oceanos de dinheiro público para o PT e outros partidos. A camarilha dos quatro, segundo a denúncia, compunha o núcleo central do esquema, no qual se concebia o crime. No plano operacional, esse núcleo central se aliou à "quadrilha" do lobista Marcos Valério e seus sócios, que já tinham experiência no tráfico de dinheiro desde a campanha do tucano Eduardo Azeredo ao governo mineiro, em 1998. O terceiro braço do esquema era formado pelos dirigentes do Banco Rural, que cediam sua estrutura e sua burocracia para a simulação de empréstimos financeiros e a distribuição do dinheiro – em "malas", "sacolas", "envelopes", "pacotes".
O documento serve como uma necropsia do PT, mas também é arrasador para o presidente Lula, ainda que seu nome não seja mencionado no texto. Em primeiro lugar, porque derruba a alegação de que todas as acusações não passam de jogo eleitoral e intriga da oposição – ou, segundo os devaneios mais lisérgicos, de complô da mídia e conspiração das elites. Desta vez, o autor das denúncias é o procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza, nomeado para o cargo pelo próprio presidente Lula. Em segundo lugar, e mais importante, porque a peça do MP afirma que a "organização criminosa" funcionava com o objetivo de sustentar o projeto de poder do PT – e é evidente que o beneficiário era o presidente. O novo quadro desmonta a principal defesa de Lula, que sempre disse desconhecer todas as ações ilegais e clandestinas em torno do mensalão. A tese de que não sabia de nada é juridicamente boa porque livra o presidente da acusação de impeachment, mas agora ela se tornou politicamente devastadora e logicamente insustentável. Compromete a própria capacidade de Lula de governar. Compromete sua autoridade, nem digamos moral, que essa já se exauriu, mas sua autoridade administrativa.
A PROPINA PRIMAL |
Afinal, se estava alheio a tudo, pode-se inferir sem exagero que Lula desconhecia como se construía o apoio a seu governo e ignorava o que faziam seus principais auxiliares. Um presidente pode ser enganado por autores da corrupção que ocorre num ministério de importância média comandado por um aliado recém-chegado – mas é inverossímil que não seja informado sobre o que se faz no coração de seu governo, uma instituição como a Casa Civil, comandada por um homem como José Dirceu, a quem ele mesmo chamou de "capitão do time". Por não atender aos mínimos requisitos lógicos, o dilema de saber ou não saber tornou-se uma questão ultrapassada. O que se precisa investigar agora é como Lula se articulava com o bando dos 40. Que relações financeiras tinha com o "chefe da quadrilha", o deputado cassado José Dirceu?
Diante do efeito demolidor da denúncia sobre Lula, a oposição voltou a falar em impeachment, mas a tendência é que tudo não passe de fogo de palha. No Congresso Nacional, casa em que se materializam as tensões políticas do país, percebe-se que a oposição quer levantar a discussão sobre o impeachment, mas não tem intenção de colocá-lo em prática. Os líderes oposicionistas preferem que Lula fique no cargo, embora sangrando e desmoralizado, a promover um delicado processo de impeachment contra um presidente que, apesar de tudo, reúne sólido apoio popular – mais de 40%, conforme as últimas pesquisas eleitorais. Mas, se existe leniência da oposição, que submete os interesses da nação às suas conveniências políticas, o escândalo do mensalão mostrou um dado a comemorar: existem instituições em pé no país – e, nesse cenário, o Ministério Público Federal ocupa lugar de destaque. "Essa denúncia é uma novidade absoluta, um avanço institucional significativo", afirma o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. A demissão de Antonio Palocci da Fazenda também mostrou o vigor institucional do país. O ministro, que fez uma administração impecável, contrastando com a lambança contra um simples caseiro que o incriminou, deixou o governo sem que houvesse turbulência alguma na economia. É um sinal eloqüente de amadurecimento institucional. "A experiência do período autoritário foi tão penosa que é uma espécie de vacina contra qualquer saída radical, que não passe pelas vias institucionais", avalia Paulo Brossard, ex-ministro da Justiça e uma das melhores cabeças jurídicas do país.
A denúncia do MP, apesar de tudo o que já representa, ainda é parcial, pois as investigações não terminaram. Há sinais de que, mesmo nesta primeira etapa das investigações, podem surgir novidades nos próximos meses. No corpo da denúncia do MP aparecem lacunas que levam a crer que os procuradores não contaram tudo o que sabem. Um exemplo: a denúncia afirma que os 50.000 reais pagos por Marcos Valério ao deputado João Paulo Cunha, então presidente da Câmara , eram "propina" para viabilizar a contratação da SMPB pela Casa. De onde os procuradores tiraram essa certeza? A denúncia não esclarece, embora desça aos detalhes do pagamento. Isso pode ser uma falha na exposição da denúncia, mas é mais provável que seja uma tática. Um indício nessa direção está no fato de que a maior parte das provas apontadas na denúncia é formada por testemunhos já conhecidos de envolvidos no esquema – muitos dos quais prestados à CPI dos Correios. Não há, por exemplo, uma única menção a interceptações telefônicas, um tipo de prova que costuma integrar qualquer denúncia do MP, sobretudo em casos de corrupção. Também não há nenhuma referência a seis dos dezenove deputados mensaleiros pilhados pela CPI bicando no valerioduto. O deputado Josias Gomes, por exemplo, fez dois saques, de 50.000 reais cada um, no Banco Rural de Brasília. Seu nome não aparece nem na lista de testemunhas nem na de denunciados. Por que será?
VEJA ouviu de um membro do Ministério Público que participou da investigação uma explicação para as aparentes lacunas da denúncia. Falando em tese, essa fonte disse que omissões e supressões são comuns quando se quer ocultar procedimentos da sindicância que ainda está em curso. Em técnicas especiais de investigação, como o uso de réus-colaboradores infiltrados, há casos em que procuradores chegam a denunciar criminalmente o delator, ainda que depois peçam perdão judicial para o criminoso, apenas para despistar os suspeitos. No caso específico da investigação conduzida pelo procurador Antonio Fernando, VEJA soube da identidade de pelo menos um réu-colaborador, cujo trabalho permitiu à investigação conclusões incisivas – e aparentemente aéreas – sobre o esquema montado pelo PT. Trata-se do doleiro Lúcio Bolonha Funaro, dono da Guaranhuns Participações, que repassou pelo menos 6,5 milhões de reais ao PL a mando da cúpula do PT. "Antonio Fernando é um procurador experiente. Se ele não deixou algo explícito, com certeza foi para não atrapalhar investigações que ainda estão em curso", diz um procurador da República com vasta experiência em casos de corrupção.
Um dos alvos das próximas investigações é o BMG, outro banco que, ao lado do Rural, integrou o núcleo financeiro da "organização criminosa". O BMG para Lula é uma guerra. Enquanto o MP prossegue com seus trabalhos, outra instituição passa a ser desafiada – a Justiça. A denúncia foi entregue ao Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país, e caiu nas mãos do ministro Joaquim Barbosa. O ministro já mandou avisar os quarenta denunciados de que têm quinze dias para apresentar a defesa, mas também já avisou o país de que o caso não será solucionado antes de 2007. Claro que os prazos precisam ser cumpridos e os acusados precisam ter amplo direito à defesa, mas causa um certo desconforto constatar que, ao receber a denúncia mais contundente que o MP já fez em sua história, a primeira reação da Justiça tenha sido dizer que a coisa vai demorar... Como a denúncia é demolidora e o caso é imenso, envolvendo dezenas de acusados apenas neste primeiro momento, talvez o Supremo Tribunal Federal possa tomar algumas providências banais para evitar que mais um caso de corrupção seja tragado pela morosidade da Justiça. O caso do mensalão já passou pelo teste do Congresso, com a CPI produzindo um belo resultado. Passou pelo Ministério Público, com uma denúncia exemplar. Chegou a vez da Justiça.
O implacável Antonio
Joedson Alves/AE |
O procurador-geral: uma peça exemplar |
O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, é um profissional discreto, disciplinado e rigoroso. Na semana passada, a personalidade desse cearense de 57 anos, casado e pai de três filhos, rompeu os círculos profissional e familiar e se cristalizou na devastadora peça de acusação contra os quarenta membros da quadrilha do mensalão petista. Para preparar a denúncia apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF), Antonio Fernando coordenou o trabalho de colegas, que costumavam varar as madrugadas em absoluto sigilo. Católico praticante, do tipo que freqüenta missa e lê a Bíblia, ele foi implacável ao denunciar, um por um, os principais dirigentes do governo que o nomeou para o cargo de procurador-geral, em junho do ano passado, graças ao decisivo apoio do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. "Ele sempre falava que não iria manchar a biografia para ajudar o governo", diz um colega de trabalho. Bingo!
Fotos da Agência Estado, Agência Brasil, Agência 1º Plano, Folha Imagem, Ana Araujo, Obritonews, Cbpress, O Globo, Jornal O Tempo e Jornal Estado de Minas |