Paris sob o jogo de Pequim
Celso Ming
O presidente da França, Jacques Chirac, anunciou ontem que sancionará a lei do Contrato do Primeiro Emprego que tantas manifestações violentas de rua vai provocando. Em Beijing, o governo chinês trata de se meter diretamente na negociação do reajuste dos preços do minério de ferro, que a Vale do Rio Doce pretende seja de 24,6%, depois de ter alcançado 71,5% no ano passado. São dois fatos de enorme densidade política amarrados entre si.
O desemprego entre os jovens está aumentando na Europa. Números recentes divulgados pelo jornal inglês Financial Times dão conta de que o desemprego atinge 7,8 entre 100 jovens até 25 anos. Na Inglaterra, são 7,4 e na Alemanha, 6,5. Mais grave ainda, nada menos que 70% dos empregos oferecidos aos jovens na França não passam de contratos temporários. Terminado o prazo, o sujeito é despachado para o olho da rua.
O texto original da lei permite que empresas com mais de 20 empregados demitam sem justa causa, portanto, sem pagar indenização, funcionários de menos de 25 anos com até dois anos de casa. O presidente Chirac anunciou ontem que planeja fazer modificações. Uma delas é derrubar esse prazo de 2 anos para 1.
O objetivo do governo do primeiro-ministro Dominique de Villepin é encorajar o empresário a oferecer mais empregos: se pode demitir mais facilmente do que permitia até agora a legislação, por que não contratar?
Os sindicatos e a classe média vêem nisso uma quebra nos direitos trabalhistas, o primeiro passo para a "volta à lei da selva" e para o sumidouro de empregos. A nova lei pretende beneficiar a população mais pobre. Mas as manifestações em Paris, que estão descambando para saques e queima de veículos, são conduzidas por universitários. A inquietação tem se ampliado.
Os mais simplistas atribuem a falta de postos de trabalho no mundo rico ao alto emprego da automação e da Tecnologia de Informação, que dispensa estoques, instalações, máquinas, capital de giro e, claro, pessoal.
Mas o problema é mais profundo. A China e um punhado de países asiáticos (Taiwan, Coréia do Sul, Índia, Tailândia, Vietnã, etc.) atiram-se à industrialização, graças à oferta de mão-de-obra muito barata e a excelentes facilidades operacionais. À medida que produtos cada vez mais baratos e de mais qualidade tomam os mercados do planeta, a indústria da Europa e dos Estados Unidos migra para a Ásia. O desemprego entre os jovens tem a ver com esse movimento.
A interferência direta do governo chinês nas negociações de minério de ferro é parte da mesma lógica. Conforme amplia sua indústria para produzir bens exportáveis, a China enfrenta escassez de matérias-primas. É o que explica a disparada dos preços das commodities. Nos últimos três anos, as cotações do cobre aumentaram 182% e as do minério de ferro, 121%. A indústria siderúrgica chinesa multiplicou por três sua capacidade de produção. Era de 125 milhões de toneladas de aço em 2000 e agora é de 470 milhões de toneladas. (Apenas para comparar, a produção brasileira de aço bruto está estancada ao redor dos 33 milhões de toneladas.)
O objetivo chinês é pressionar os fornecedores de matérias-primas (e não só do minério de ferro) para estancar a escalada dos preços. No caso do minério de ferro, provavelmente não evitará que as leis do mercado prevaleçam. Mas ficou claro que o governo de Beijing está disposto a usar sua musculatura política para dobrar os fornecedores. Se conseguirá, é para conferir.
O fato central é, portanto, a rápida globalização dos mercados. Ao incorporar todos os anos 30 milhões de pessoas ao mercado de trabalho (e de consumo), a China provoca uma redistribuição de renda em escala global. E, como já foi lembrado, não é só a China. Vários países vizinhos vão pelo mesmo caminho.
Não há região do Planeta que escape dos efeitos deste jogo. Mas alguns países parecem mais expostos do que outros e cada povo reage como pode.
Nos Estados Unidos, os sindicatos estão abrindo mão de direitos trabalhistas conquistados nos anos de ouro. Na França, queimam carros e promovem arrastões pelas ruas de Paris.