Mark Ralston - 30.mar.06/France Presse | Operários checam qualidade de sapatos em fábrica na cidade de Wenzhou, no sudeste da China |
CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL
A entrada da China no cenário global tem sobre a indústria brasileira um impacto semelhante ao da abertura comercial dos anos 90, quando o setor foi obrigado a se ajustar para enfrentar a concorrência dos produtos importados.
A opinião é do economista-sênior do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) Maurício Mesquita, para quem o Brasil corre o risco de desindustrialização em razão da China.
Mesquita sustenta que a indústria brasileira erra ao resistir à Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e ver nos Estados Unidos uma ameaça à sua sobrevivência. "O risco não vem dos Estados Unidos, mas da China", afirma o economista brasileiro.
A seguir, trechos da entrevista, concedida à Folha por telefone, na semana passada:
Folha - A China representa uma ameaça ou uma oportunidade para a América Latina?
Maurício Mesquita - É tanto um desafio quanto uma oportunidade. Se pensarmos em termos setoriais, é evidente que é uma oportunidade para as áreas de agricultura e mineração. Mas para a indústria, é um imenso desafio.
O desafio óbvio é o custo da mão-de-obra, o crescimento da produtividade, a escala, a agressividade com que o Estado chinês apóia os seus produtores.
Folha - Dá para competir com a China no setor industrial?
Mesquita - Esta é a grande questão. Quais são os pontos mais fortes da China? Certamente o custo da mão-de-obra, que não tem como competir de igual para igual. A questão é pensar em como reduzir essa vantagem.
Em última análise, o desafio do Brasil é diminuir o desemprego, a pobreza e incluir essa massa que está fora do mercado de trabalho.
Um caminho é ir em direção a produtos que sejam mais diferenciados, que tenham mais tecnologia, onde o custo da mão-de-obra não seja tão determinante. É uma solução que envolve investimentos de médio e longo prazos.
Para os produtos que dependem puramente do preço para ser competitivos, dá para aumentar a produtividade e explorar melhor as diferenças geográficas que o Brasil tem. Nós temos um exército de mão-de-obra em áreas como o Nordeste que é historicamente subaproveitada.
Supondo que a gente consiga ter um câmbio que não trabalhe contra, seria possível estimular a maior presença desses setores que têm mais capacidade de empregar nessas áreas onde há um excesso de mão-de-obra, em que o salário é supercompetitivo. Além disso, temos de aproveitar a vantagem geográfica, que é a proximidade com os mercados, principalmente o americano.
Acho que nós subestimamos muito a discussão da Alca, que teve sempre como foco agricultura e subsídios. A indústria não entrou muito na discussão.
O contexto internacional também não. Qual a implicação que tem a entrada de países como a China e a Índia nesse mercado? Se colocamos todas essas variáveis na equação, a importância que tem o acesso privilegiado ao mercado americano muda totalmente de figura e ganha peso.
Folha - Os Estados Unidos são o mercado onde o Brasil consegue colocar avião, celular, carro...
Mesquita - Sim. Qual é o risco para a indústria? O risco não vem dos Estados Unidos, vem da China. Se fôssemos fazer um acordo de livre comércio com a China, eu daria toda a razão se a indústria tivesse uma atitude defensiva. Mas, no caso do mercado americano, nós somos protegidos por uma série de questões, como o custo da mão-de-obra, e eles já estão se movendo dessas áreas.
Há um conjunto de soluções que permitem saídas para enfrentar este desafio [da China]. E saídas que dêem conta do povo. Quando olhamos ao redor do mundo vemos que não houve outra atividade com capacidade de tirar mais gente da pobreza do que a indústria. Não há nada com o mesmo dinamismo e a mesma velocidade.
Com a concorrência da China, os requisitos para se ter uma indústria bem-sucedida aumentaram drasticamente. É possível que a gente vá para um cenário de desindustrialização mesmo, com especialização em recursos naturais, como a Austrália e o Chile.
Folha - O câmbio atual é um passaporte seguro para isso?
Mesquita - A tendência certamente leva a gente para esse cenário. Mas não me pergunte como evitar. Não é uma questão trivial.
Folha - Qual seria o nível de câmbio razoável?
Mesquita - É impossível responder. Mas grande parte do elemento China surge com força a partir dos anos 2000 e é um choque semelhante ao choque da abertura dos anos 90. De repente, entra no mercado um país que é ultracompetitivo em várias áreas e o Brasil tem que se ajustar a isso.
Pensando do ponto de vista real, o câmbio deveria caminhar não na direção da apreciação, porque isso exacerba o choque. Se entra um cara supercompetitivo e você ainda aprecia o câmbio, só esta reforçando ainda mais a competitividade dele. A direção, no mínimo, teria de ser a manutenção do câmbio real ou a desvalorização para suavizar esse choque.
Folha - Mas apesar do câmbio e da entrada da China, o Brasil continua aumentando as exportações.
Mesquita - Acho que isso é uma questão de tempo. É como revogar a lei da gravidade. Em algum momento esta coisa vai reverter. Não há nada que me leve a acreditar que, de repente, o câmbio deixou de ser um fator relevante.
O Brasil aumentou produtividade nos anos 90, mas saiu também de duas megadesvalorizações. Se funcionou para baixo, porque não vai funcionar para cima?
Folha - O Brasil tem uma estratégia para enfrentar a China?
Mesquita - Acho que não. O país ainda fica reagindo aos acontecimentos do momento. Até pela instabilidade política, o governo é incapaz de pensar além de 1 ou 2 anos. Dizer que o superávit está enorme e que não precisamos nos preocupar com o câmbio é uma questão de hoje. E a médio e longo prazos? Esses investimentos levam tempo para gerar resultados.
Folha - A ausência de estratégia brasileira e o forte papel que o Estado tem na economia chinesa acabam reforçando ainda mais a vantagem competitiva da China?
Mesquita - No curto prazo, não há dúvida de que isso é uma vantagem para os chineses, porque eles criam condições que são extramercado. Dão acesso ao crédito, uma série de subsídios, apoio à questão tecnológica etc., que melhoram a condição das empresas no mercado internacional.
Eles também têm um mínimo de horizonte de onde querem chegar. Os asiáticos em geral tem essa capacidade de olhar além de 1 ou 2 anos à frente e tentar ver para onde a economia vai e qual é o papel que o país vai ter na divisão internacional do trabalho. Mas é muito complicado tentar extrair disso lições para o Brasil.
Folha - Por quê?
Mesquita - Se pensarmos no modelo de política industrial que os chineses têm, é uma coisa ultra antidemocrática. Eles escolhem os vencedores, e só dão crédito e incentivos para eles. Como ocorreu na Coréia também. Isso só se sustenta porque qualquer reação de descontentamento é imediatamente eliminada.
Eu não consigo, nem quero, ver esse tipo de modelo em um país como o Brasil. Não é óbvio o que nós podemos extrair dessa história de sucesso, além desses elementos mais gerais, da importância do comércio, das exportações, da preocupação de ter um horizonte maior de planejamento.
O modelo em si não é uma solução, porque envolve um país que não seja democrático e no qual as decisões não são transparentes.
Ao mesmo tempo, temos de conviver com isso no mercado internacional. Acho que tem de haver uma resposta diplomática, fazer o máximo para tentar trazer os chineses para o terreno das regras internacionais do comércio.
Os Estados Unidos e em menor grau a Europa estão mais ativos nesse sentido, porque antes era uma leniência total. Se o Brasil fizesse um terço do que a China vem fazendo, nós já teríamos sido excomungados.
Por uma série de razões, como o crescimento do déficit e a pressão que está havendo dos setores afetados, os americanos estão muito mais incisivos. O perigo é que a China faça concessões aos Estados Unidos e não ao resto do mundo. Do tipo, vamos comprar mais Boeings.
Folha - É o que eles estão fazendo. Na semana passada havia uma missão chinesa nos Estados Unidos com a tarefa de fechar contratos de importação de US$ 15 bilhões.
Mesquita - Exato. E isso não gera nenhum benefício para a gente.
Mesquita - O Brasil está perdendo mercado. Até agora, a perda parece ser relativamente pequena, algo de 3% a 4% do total das exportações, mas a tendência é muito clara. As perdas tendem a aumentar ao longo do tempo.
Existe coincidência grande entre as coisas que o Brasil exporta e a China exporta. Se olharmos só a indústria, nós certamente estamos na linha de tiro.