Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, abril 18, 2006

Míriam Leitão - Terra sem lei



Panorama Econômico
O Globo
18/4/2006

A hoje ministra Marina Silva convenceu o então presidente Fernando Henrique a considerar 17 de abril o dia nacional de luta pela reforma agrária. Na verdade, deveria ser considerado o dia da impunidade: dez anos depois do massacre de Eldorado dos Carajás, os culpados não foram punidos, alguns nunca foram réus, ninguém está hoje na cadeia por causa do crime. Os Sem-Terra, por sua vez, atacam empresas produtivas, destroem patrimônio de pesquisa, fazem o que bem entendem e continuam sendo financiados pelos cofres públicos.

O Brasil é uma terra sem lei. Todos os personagens envolvidos na disputa de terra sabem disso ou já tiveram provas disso. Um coronel da PM comanda uma unidade que mata 19 manifestantes que bloqueiam uma estrada. Condenado a 228 anos de prisão, cumpre um ano e está em liberdade. Na entrevista que concedeu à TV Globo, disse uma grande verdade e um disparate.

A grande verdade é que faltaram pelo menos três pessoas no banco dos réus: o comandante da Polícia Fabiano Lopes, o secretário de Segurança Paulo Sette Câmara e o ex-governador Almir Gabriel. A Justiça poderia até considerá-los inocentes, mas primeiro era preciso julgá-los. A pergunta do coronel Pantoja é obviamente correta:

— Por que parou em mim?

O grande disparate dito pelo coronel é a afirmação "eu não tenho culpa". Ora, ele comandou a tropa, ela obedeceu as suas ordens como as tropas costumam fazer — a não ser em caso de motim — e ele disse que nem mandou matar, nem viu quem matou.

O ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, após parecer do procurador-geral da República, decidiu que o coronel Pantoja pode ficar em liberdade até o julgamento do pedido de hábeas-corpus feito ao STF, mesmo depois de a sentença ter sido confirmada no Superior Tribunal de Justiça. Ou seja, enquanto não se decide se ele pode ficar ou não em liberdade, ele fica em liberdade. E se todos os presos condenados hoje recorressem ao mesmo artifício? Seriam todos soltos?

Por outro lado, o presidente Lula não é o que afirmou que seria. Durante a campanha, disse que era a melhor pessoa para lidar com o Movimento dos Sem Terra. Ele saberia, argumentava, ver os dois lados. Seu primeiro ato foi pôr o boné do MST na cabeça. Os líderes, ao saírem do Planalto naquele dia, reafirmaram que continuariam invadindo propriedades produtivas ou não. O ex-presidente Fernando Henrique, quando os recebeu em seu gabinete pela primeira vez, impediu que abrissem lá uma bandeira do movimento: "Aqui só a bandeira nacional." É a liturgia dos símbolos que Lula sempre ignorou. Lula fez tábula rasa da legislação que derrubou o número de invasões, conflitos e mortes no campo: a que proibia a desapropriação de fazenda ocupada.

O MST e movimentos semelhantes têm neste governo mais verbas públicas do que jamais tiveram e nenhuma punição pelos crimes que cometeram durante os últimos anos. O número de mortes decorrente de conflitos de terra cresceu no primeiro ano do governo Lula. Haviam sido 20 mortos em 2002 e foram 42 no primeiro ano do atual governo. O segundo pior dado depois dos 54 mortos de 1996. O número de ocupações aumentou 55% nos três anos do governo Lula.

O presidente não levou paz ao campo porque parte do erro de achar que não deve punir os companheiros do MST. Quando houve a invasão criminosa do laboratório da Aracruz, com destruição de pesquisa, a declaração de condenação do então ministro, hoje candidato, Miguel Rossetto, não podia ser mais burocrática. Estava falando por falar, já de olho nos votos que teria. O governo costuma dizer que não se pode aceitar "a criminalização do movimento social". Balela. Primeiro, porque, quando o crime é praticado, não interessa por quem, a lei tem que ser cumprida. Segundo, porque existe movimento social que não pratica crime e esse, por óbvio, não será criminalizado. Terceiro, porque existem formas de restringir quaisquer excessos que não seja mandar uma tropa comandada por um coronel Pantoja de plantão, como fez o governo tucano do Pará naquele sombrio dia 17 de abril de 1996. O governo do Rio Grande do Sul mostrou o que se pode fazer para exigir o cumprimento da lei: suspendeu a distribuição de verbas públicas para a Via Campesina.

Os grandes proprietários de terra no Brasil, vários economistas e especialistas em agricultura acham que a agricultura familiar produzida nos assentamentos é um erro pois é cara demais e não consegue competir com a agricultura de ponta. Balela. O campo brasileiro tem espaço para todo tipo de produção. É possível especializar os agricultores em pequenas culturas com assistência técnica e financiamento adequado. O ambientalista Cláudio Pádua, do Instituto Ipê, fez isto no Pontal do Paranapanema: um acordo com o MST para a produção de sementes de floresta nativa para reflorestamento. No fim do ano passado, o programa Café com Floresta recebeu o prêmio Tecnologia Social da Fundação Banco do Brasil.

O fato de serem pequenos não transforma os assentados automaticamente em heróis do conservacionismo. Pelo contrário, os assentamentos do Incra são responsáveis por 15% do desmatamento da Amazônia: entre 97 e 2002, destruíram uma área equivalente ao estado de Pernambuco.

Mas o grande vilão do desmatamento sempre foi e sempre será o grileiro que toma terra pública como sua e destrói o patrimônio ambiental do país. A rede de interesses de grandes proprietários atrás da grilagem na Amazônia, a sórdida utilização da mão-de-obra escrava, a devastação da floresta são a maior confirmação de que, quando o assunto é terra, o Brasil é uma terra sem lei.

 
 

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