Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 16, 2006

Crise política, mentira, democracia Celso Lafer

OESP


Tem várias facetas a crise política que o País está vivendo, gerada pela conduta de importantes próceres do governo federal e de relevantes figuras da direção do PT - o partido de sustentação e origem do presidente da República. Uma das mais significativas para a dinâmica da democracia é o empenho de governantes e de seus colaboradores, e de muitos parlamentares do PT, em ocultar ou negar ilegalidades provenientes de espúrio relacionamento do poder público e do partidário com o dinheiro.

O empenho no ocultar e no negar abrange "os ilícitos amplamente conhecidos sob o epíteto de mensalão". São estes os termos do relatório do deputado Osmar Serraglio, da CPMI dos Correios, que adquirem densidade jurídica própria com a denúncia encaminhada ao Supremo Tribunal Federal pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza. A denúncia qualifica o esquema do mensalão como uma organização criminosa com três núcleos: o político-partidário, o publicitário e o financeiro. Os relacionamentos apurados pela CPMI e pelo procurador-geral da República põem em questão a moralidade da administração pública e comprometem, na interação Executivo-Legislativo, o livre exercício dos poderes constitucionais.

Cabe lembrar que idêntica disposição para esconder também se traduz na insistência em dissimular o uso da máquina do Estado com o objetivo de constranger, desqualificar e silenciar pessoas. É o caso da ilegal violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa.

O poder que busca ocultar-se pelo segredo e que oculta escondendo-se atrás da mentira é um poder que resiste a apresentar-se à luz do sol. Vale-se da estratégia do não dizer e do dizer falso, que caracteriza regimes autoritários que agem na sombra, para ferir um dos pressupostos básicos da democracia, que é, para lembrar Bobbio, o do exercício em público do poder comum. O fundamento do princípio da publicidade do poder dos governantes é o de dar aos governados condições de julgá-los. A cidadania deve ser colocada em condições de saber para se valer de suas prerrogativas democráticas de fiscalização e controle dos seus representantes.

Kant afirma o imperativo republicano da transparência do poder não apenas pelas razões políticas acima mencionadas, mas também por uma necessidade moral. Afirma que a publicidade é um critério de moralidade, pois entende que são injustas todas as ações relativas aos direitos dos outros homens que não são suscetíveis de se tornar públicas. As condutas desvendadas pelo jornalismo investigativo e pelos meios de comunicação, o número dos envolvidos e dos ilícitos arrolados no relatório do deputado Serraglio e na denúncia do procurador-geral da República se converteram kantianamente em escândalos precisamente à medida que se tornaram públicos, ou seja, porque as transgressões a normas e valores não puderam ser acobertados pelo segredo ou ocultados pela mentira.

Segredo e mentira não são a mesma coisa, mas podem confluir. O segredo, como o que é apartado do conhecimento geral, pode ser legítimo e merecer proteção jurídica. É o caso do direito à intimidade e do sigilo bancário ou telefônico. São situações em que a confidencialidade é a regra e o direito à informação, a exceção. Na vida política, no entanto, a disposição de esconder tende a se avizinhar da impropriedade e freqüentemente deságua na mentira. É o que está acontecendo em nosso país, pois governantes e seus colaboradores, ao se prenderem à preservação do segredo de suas transgressões, buscam não revelá-lo - quando podem, pelo silêncio e, na impossibilidade do silêncio, pela mentira.

A mentira, como uma criação da mente com a intenção de enganar, é uma condenável transgressão ética. Aristóteles diz, na Ética a Nicômaco, que "a verdade é nobre e merecedora de aplauso e a mentira é vil e repreensível". A proibição do falso testemunho é um dos 10 mandamentos. "Não espalharás notícias falsas nem darás a mão ao ímpio para seres testemunha da injustiça", ordena a Bíblia no Êxodo (23,1). O Talmude equipara a mentira à pior forma de roubo: "Existem sete classes de ladrões e a primeira é a daqueles que roubam a mente dos seus semelhantes através de palavras mentirosas." O padre Antonio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma pregado em 1654 no Brasil, explica: "A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira ou vos tira o que tendes ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba ou vos condena."

O Direito Positivo, atento ao valor da preservação da veracidade, impõe pena à mentira. Sanciona a fraude, a simulação, a calúnia, destrutivas da confiança na palavra, base do justo relacionamento jurídico entre as pessoas. Politicamente, uma democracia necessita da extensão igualitária da confiança recíproca entre os cidadãos. Por isso pressupõe a eliminação, tão completa quanto possível, da palavra que esconde, simula e engana. O princípio da prevalência da boa-fé, subjetiva (a disposição de honestidade) e objetiva (os comportamentos), no Direito e na política, responde a este imperativo.

O governo fere o Direito e a democracia, iludindo a boa-fé dos brasileiros. A dos seus adeptos e também a dos seus opositores que aceitavam, até a eclosão da crise política, a postulação da integridade moral afirmada pelo PT na sua trajetória e tão flagrantemente desmentida no exercício do poder. Sei que os teóricos da razão de Estado, na tradição que remonta a Maquiavel, justificam a derrogação da ética da veracidade se ela permite, como se lê em O Príncipe, "gran cose". Não há a hipotética e discutível justa causa de "gran cose" na situação presente. Há solerte pequenez. Isto é uma vergonha, como diria Boris Casoy, lamentavelmente afastado da condução do Jornal da Record por indevidas pressões do governo ao direito à informação da cidadania.



Arquivo do blog