Com a queda de Palocci, Lula perde seu
último guardião, fica mais só no poder
e se isola de sua própria história política
Otávio Cabral e Leandra Peres
Na quarta-feira passada, o casal presidencial, sob a mais absoluta discrição, voltou a morar no Palácio da Alvorada, depois de uma reforma de dezessete meses que custou 18 milhões de reais. A idéia inicial era marcar a volta ao palácio residencial com uma festa de reinauguração, com alguma pompa e muitos convidados. Mas o evento, que a oposição apelidara de Baile da Ilha Fiscal, numa referência à grande festa imperial promovida a seis dias do nascimento da República, foi melancolicamente cancelado. O cancelamento da festa do Alvorada talvez seja a expressão mais visível da solidão em que o presidente Lula mergulhou – um presidente que não encontra clima favorável nem mesmo para participar de um evento festivo em sua morada oficial. Com a demissão de Antonio Palocci, "o homem a quem devo muito", ocorrida menos de um ano depois da queda de José Dirceu, "o capitão do time", Lula perdeu a última referência de solidez em seu governo. "Nunca vi o Lula tão triste, tão preocupado", atesta um petista com acesso ao presidente. "Nem a ressaca das derrotas nas eleições foi tão dura para ele quanto a demissão de Palocci."
À solidão presidencial soma-se uma suspeita incômoda e recorrente: Lula sabia? Lula sabia da operação que violou o sigilo bancário do caseiro? Não há sinais de que o presidente tenha sido informado antecipadamente da operação clandestina, mas seus auxiliares e aliados chegam ao ponto de dizer que o presidente não sabia de nada – nem que o caseiro tinha muito dinheiro em sua conta. Isso é altamente improvável. Em 14 de março, quando o jornal O Estado de S. Paulo publicou a entrevista de Francenildo Costa incriminando Palocci, o senador petista Tião Viana, um dos mais assíduos interlocutores de Lula, espalhava no Congresso que o caseiro recebera dinheiro para falar. Mas Lula não foi informado de nada? No dia seguinte, num jantar para festejar o aniversário do ministro Jaques Wagner, o assunto foi abertamente comentado. Entre os presentes, estavam dois assessores íntimos do presidente, seu secretário particular Gilberto Carvalho e sua assessora especial Clara Ant. Mas, de novo, Lula não foi informado de nada? Pela versão oficial, Lula só soube do caso no dia 17 de março, quando a notícia dos extratos do caseiro com depósitos de 25 000 reais já era pública.
É certo, porém, que Lula teve informações sobre a exata dimensão da crise no dia 21 de março, terça-feira, seis dias antes da demissão de Palocci. Nessa data, o presidente comandou uma reunião no Planalto, na qual foi informado da situação. Soube que a quebra do sigilo bancário estava perigosamente perto de Palocci e teve uma reação de profunda decepção. Mas, mesmo diante da gravidade dos fatos, o presidente não tomou nenhuma providência. Preferiu esperar. Dois dias depois, a 23 de março, quinta-feira, em nova reunião no Planalto, dessa vez tensa e longa, encerrada lá pelas 11 da noite, Lula pressionou Palocci a se explicar – e, mesmo diante das respostas esquivas do ministro, novamente não tomou nenhuma providência. Deu-lhe um prazo até a segunda-feira. No dia seguinte, 24 de março, sexta-feira, Lula soube de tudo por um telefonema de Jorge Mattoso, então presidente da Caixa Econômica Federal. Conforme relato de dois interlocutores do presidente ouvidos por VEJA, Mattoso contou que quebrara o sigilo do caseiro a pedido de Palocci e avisou que revelaria tudo à polícia. De novo, Lula preferiu esperar os acontecimentos.
Jamil Bittar/Reuters |
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Completadas mais de duas semanas desde que seu governo cometeu o mais violento ataque à Constituição e aos direitos de um cidadão, o presidente ainda não veio a público falar do assunto nem dizer se tinha ou não ciência dos fatos – e, dado o passado recente, é inútil esperar que Lula preste satisfações claras à sociedade. Na ausência disso, a opinião pública limita-se a interpretar o comportamento e os discursos presidenciais – e, aí, entra-se no reino da ambigüidade. Na segunda-feira, 27 de março, dia em que Jorge Mattoso entregou Palocci na polícia, assessores de Lula vazaram para jornalistas que ele, sentindo-se traído por seu ministro da Fazenda, decidira demiti-lo no mesmo dia. Nem uma coisa nem outra fazem sentido. Além de conhecer a participação do ministro antes disso, o presidente tratou Palocci com imensa fraternidade na solenidade de sua despedida. Chamou-o de "grande irmão" e "eterno companheiro", expressões calorosas demais para o "traído" dirigir ao "traidor". A liturgia sugere que Lula não iria desancar seu ministro, mas um pouco mais de formalidade talvez não deixasse tantas dúvidas sobre a suposta traição.
Nada disso diminui o impacto imenso que a saída de Palocci provocou no governo e, especificamente, no próprio presidente. Por circunstâncias políticas e pessoais, Lula talvez tenha sido o presidente da história democrática que mais delegou poderes a seus auxiliares. Foi isso que tornou José Dirceu, quando estava no governo, uma espécie de primeiro-ministro. Fenômeno semelhante aconteceu com Palocci, que, no comando da Fazenda, era quase como um co-presidente da República, razão pela qual sua saída é tão pesada. Em 1958, quando demitiu seu ministro da Fazenda, o presidente Juscelino Kubitschek perdeu um ministro e um amigo de juventude, além do braço-direito do governo. Mas ninguém achou, então, que a saída de José Maria Alkmin pudesse levar o governo a mudar de rota, abandonar o lema dos "cinqüenta anos em cinco" ou desistir de construir Brasília. O governo era o próprio JK. "Todos sabiam que a política era do presidente", diz o historiador Estevão Martins, da Universidade de Brasília. "Agora, quando Palocci sai, Lula é obrigado a dar mostras contundentes de seu compromisso com uma política que deveria ser sua, e não do ministro. Isso acontece porque nenhum outro presidente aceitou dividir seu poder como Lula."
Na história brasileira, não são incomuns os presidentes que acabam presas de uma profunda solidão política. Getúlio Vargas, apesar de ainda contar com aliados de peso e de respeito, sentiu-se tão só a ponto de disparar um tiro no peito, em 1954. Jânio Quadros é outro que, ao assumir, rompeu com o próprio partido e, num lance radical de populismo que não deu certo, renunciou ao cargo em 1961. Na história mais recente, Fernando Collor, às vésperas do seu impeachment, chegou aos extremos do isolamento em palácio. Contava apenas com alguns amigos, e nada mais. O caso de Lula, no entanto, tem características especiais. Sua solidão parece mais aguda porque não perdeu somente auxiliares de extrema importância. Perdeu companheiros de vida. Em seu discurso de despedida, Palocci afirmou ter dedicado 25 de seus 45 anos de vida ao projeto político do presidente. José Dirceu estava ao lado de Lula havia mais de duas décadas. O ex-tesoureiro Delúbio Soares, que carrega nos ombros todos os pecados petistas, dividia seu quarto de estudante com Lula quando este era um simples sindicalista – e depois, já no exercício do poder, segurava a cigarrilha que o presidente fumava às escondidas em cerimônias oficiais.
Com a queda desses companheiros, Lula não fica isolado apenas no exercício do poder. Isola-se da própria história política. Na semana passada, antes da saída de oito ministros para concorrer nas eleições de outubro e depois da demissão de Palocci, o governo contava com catorze ministros do PT. Só seis, no entanto, tinham uma intimidade maior com Lula. Há ainda outra agravante. O partido de Lula, que nunca foi uma sigla de ocasião como é tão comum na vida brasileira, também desempenhava um papel fundamental na trajetória política do presidente. Com o estouro do mensalão, o PT entrou numa espiral de desmoralização que o transformou num fantasma de si próprio. É inevitável que, com tudo isso, Lula venha tendo toda sorte de dificuldades políticas. No Congresso Nacional, por exemplo, onde não tem líderes com estatura e estofo, o governo tropeça até para negociar acordos razoavelmente fáceis, a tal ponto que o Orçamento da União de 2006 até hoje não foi votado em plenário – um atraso que não acontecia desde 2000. O projeto de aumentar o salário mínimo para 350 reais empacou de tal forma que Lula precisou editar uma medida provisória para que pudesse vigorar já em abril.
A escassez de quadros é outro sintoma da situação de penúria e isolamento do governo. Na semana passada, com a saída dos oito ministros que vão disputar a eleição, o Palácio do Planalto teve problemas para preencher as vagas. Como uma cadeira de ministro costuma ser disputada feito balaio de ouro em Brasília, o excesso de cadeiras vazias é um sintoma eloqüente de desprestígio e esfacelamento da base política. Havia dois ministros em particular que o presidente gostaria que se mantivessem no governo – Ciro Gomes, da Integração Nacional, e Jaques Wagner, das Relações Institucionais. Lula tentou convencê-los a ficar até a última hora, argumentando inclusive sobre sua solidão palaciana e a falta de apoio político. Em vão. Os dois preferiram deixar o cargo e pensar no futuro concorrendo a algum cargo eletivo em outubro. Para a cadeira de Jaques Wagner, Lula convidou nada menos que quatro políticos petistas até que, no fim, um deles aceitou – Tarso Genro, o mesmo que já ocupou dois ministérios no governo, depois saiu para presidir o PT na crise do mensalão e agora volta para um terceiro ministério.
Sem os companheiros de longa data, o partido que ajudou a fundar e a levar ao poder e com seus aliados ressabiados, Lula vive uma situação tão complexa que lança uma nuvem escura sobre os últimos nove meses de seu governo – e, até mesmo, sobre um eventual segundo mandato, caso venha a vencer as eleições de outubro. Com a desertificação de seu governo, Lula é empurrado cada vez mais a fazer o que menos gosta – governar. Avesso às tarefas burocráticas, aos despachos enfadonhos com ministros, à leitura modorrenta de documentos oficiais, Lula gosta mesmo é de viajar e misturar-se ao povo. Nos próximos meses, a tendência é que exercite ao máximo sua capacidade de se comunicar diretamente com as massas, sem intermediários, vitaminando sua campanha reeleitoral. Até agora, como outro resultado de sua solidão, Lula não conseguiu montar um QG de campanha e está tendo dificuldade de atrair aliados, até mesmo os tradicionais, como o PCdoB, que acompanha Lula desde 1989, mas desta vez está fazendo exigências para apoiar a reeleição. As dificuldades e o isolamento não permitem supor que Lula não será reeleito. Pode ser que seja, ele ainda é o líder nas pesquisas. A dúvida que fica é, se for reeleito, com quem Lula vai governar?Montagem sobre ilustração Baptistão e fotos Evaristo Sa/AfP, Monalisa Lins/AE, Wilson Dias/Abr, Dida Sampaio/AE, Beto Barata/AE, Elza Fiuza/ABR/divulgação |