Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 01, 2005

AUGUSTO NUNES Um Brasil anterior à Abolição de 1888

jb



O deputado Fernando Gabeira fizera várias tentativas infrutíferas até conseguir falar na sessão de 30 de agosto de 2005. O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, fingia não ouvir os sucessivos pedidos de Gabeira nem enxergar sua gesticulação. Enfim atendido, o parlamentar do PV do Rio atingiu Severino com palavras no fígado:

- Sua presença na presidência da Câmara é um desastre para o Brasil. Ou Vossa Excelência começa a calar-se ou faremos um movimento para derrubá-lo.

Naquela quinta-feira, a Folha de S. Paulo divulgara uma entrevista em que Severino defendia uma tese atrevida: nenhum dos envolvidos nas patifarias do valerioduto merecia ter o mandato cassado. Como dezenas de congressistas, Gabeira ficara indignado. Mas formulou o ultimato por outro motivo: Severino vinha utilizando todos os truques para favorecer a Usina Gameleira, pertencente à família do deputado pernambucano Armando Monteiro Neto.

Uma inspeção na propriedade incrustada em Mato Grosso localizara quase mil brasileiros submetidos ao trabalho escravo. Diferentemente dos fazendeiros do século 19, os escravagistas modernos não acorrentam empregados, nem os chicoteiam até a morte. Mas confiscam a liberdade dos trabalhadores.

Essa violência, que fundamenta a conceituação da Organização Internacional do Trabalho, resulta da convergência de quatro perversidades: a apreensão de documentos dos trabalhadores, a presença de guardas armados, a imposição de dívidas ilegais e as sufocantes características geográficas do lugar.

Monteiro Filho não é o primeiro parlamentar punido por manter uma bota no Brasil anterior à Abolição. Pilhados em práticas escravagistas, o senador João Ribeiro (PFL-TO), o deputado federal Inocêncio de Oliveira (PMDB-PE) e o presidente da Assembléia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, perderam o crédito em instituições oficiais. Juram inocência, como todos os que mantêm subjugados cerca de 40 mil trabalhadores.

No ano passado, grupos que lutam pela Segunda Abolição fizeram caminhar no Congresso uma proposta de emenda constitucional (PEC) indispensável à erradicação da monstruosidade: escravocratas comprovados seriam punidos com o confisco das fazendas. Aprovada no Senado, a PEC pousou na Câmara para as duas votações exigidas pelo regimento.

Foi bem no primeiro turno. Na segunda rodada, a bancada ruralista mudou de idéia e resolveu barrar o avanço da civilização. O governo cruzou os braços. A PEC foi engavetada. Mas os arquitetos da proposta são teimosos. Estão recomeçando o trabalho de convencimento de parlamentares.

Números recentes anunciam zonas de turbulência. Para 2006, o Ministério do Trabalho reivindicou R$ 4,57 milhões destinados especificamente por serviços de fiscalização. Levou R$ 2,84, bem menos que os R$ 3,6 milhões obtidos em 2005. Além do Paquistão, só o Brasil tem um programa nacional de combate ao escravagismo. Nasceu em 1995, com a criação do Grupo Móvel, força-tarefa integrada por fiscais e procuradores do Ministério do Trabalho, procuradores da República, delegados e agentes da Polícia Federal.

O grupo fiscaliza fazendas incluídas na lista da bandidagem graças a denúncias sempre confirmadas. Por falta de gente e dinheiro, três em 10 não são conferidas.

Como entender a indiferença federal pela emenda que permitiria o confisco de terras reduzidas a infernos rurais? O presidente precisa olhar com lentes de aumento esses campos de concentração camuflados nos grotões. E estender a mão da misericórdia aos escravos do Terceiro Milênio.

[01/DEZ/2005]

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