Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 29, 2005

Sharon, o homem do ano Por Reinaldo Azevedo

PRIMEIRA LEITURA

Não tenho nenhuma dúvida de que Ariel Sharon foi a grande personalidade internacional deste ano que se encerra. Rompeu com o equilíbrio instável em que se encontrava a política israelense e conquistou a simpatia até de alguns pacifistas, que o tinham na conta de uma besta-fera. Ela era o comandante-em-chefe da ocupação israelense do sul do Líbano quando milícias invadiram os campos de refugiados de Sabra e Chatila, em 1982, e perpetraram um massacre. As evidências de que fez vistas grossas e permitiu a ação são imensas. Tal evento está em sua biografia e não merece condescendência. Sharon também é quem foi.

Politizou, então, o seu papel de soldado e desonrou a tradição do Exército israelense. Agora, na vida civil, agiu como um general estrategista e honrou a política. Antes, fez muito mal; agora, fez muito bem. A obsessão de Sharon ainda é a mesma: a segurança de Israel. Percebeu, no entanto, que o paradigma da direita de seu país era um jogo de soma zero — ou, pior, de soma negativa.

A presença dos colonos em solo palestino não aumenta a segurança do Estado, mas diminui; não abre canais de negociação com o adversário, mas os obstrui; tampouco é eficiente para coibir as ações terroristas. Ao contrário: exige a mobilização excepcional de homens para garantir a segurança dos assentamentos, o que açula as ações de sabotagem do outro lado, levando a escaramuças que só aumentam o potencial explosivo da região.

Não. Sharon não passou a ver palestinos com simpatia da noite para o dia. Tampouco me pergunto ou creio que devamos nos perguntar se ele se conforma intimamente com a existência de Gaza e da Cisjordânia ou preferiria a grande e bíblica nação de Israel, cujas fronteiras iriam muito além daquelas estabelecidas pela ONU em 1948. Nada disso, na verdade, tem importância. O fundo da consciência de Sharon só pertence a ele mesmo. Como o de qualquer um de nós, é inescrutável. O que interessa indagar é se a retirada total de Gaza contribui para a paz na região ou para o seu contrário. A resposta me parece estupidamente óbvia.

O ex-grande incentivador de colônias judaicas se transformou no homem que entregou a totalidade de Gaza ao povo árabe e, por conta disso, viu-se na iminência de perder a liderança que tinha no Likud e de ser apeado do poder. No equilíbrio instável dado, não tinha mais como se mover. Ou fazia a opção pela guerra permanente e pela escalada sem fim do Estado de segurança, que acabaria por golpear a própria democracia, ou tentava uma saída política interna. Foi o que fez. Desde a morte de Arafat, faltava em Israel um evento correspondente em importância. E coube a Sharon protagonizá-lo, com a fundação do novo partido.

Seu passado, por mais truculento que seja, curiosamente, lhe confere uma particular potência para gesto de tal risco. Afinal, não pode ser acusado de condescendência com os terroristas palestinos. Não devemos nos animar em excesso e acreditar que, desta vez, tudo caminhará para o melhor. As dificuldades são imensas. Os terroristas estão inquietos e tudo farão para minar as chances de um acordo. O natural, agora, é que as lideranças políticas palestinas comecem a negociar a ocupação da Cisjordânia. Do ponto de vista econômico e estratégico, esta, sim, é a questão delicada.

De todo modo, há momentos na história que pedem uma ruptura. E esta só é possível com coragem pessoal, com o gesto particular que abre uma fissura no statu quo e desorganiza as respostas convencionais, que tendem à conservação do que se tem. Não é tarefa para qualquer um, mas para quem tem história, ainda que nem sempre recomendável. Sharon tem.

Será que, também desta vez, o mais provável vai deitar sombra sobre o possível para mostrar que o mais prudente é o pessimismo? Vamos ver. A eventual escalada de ações terroristas pode provocar qualquer coisa, incluindo a ocupação militar de Gaza. A bola, agora, está com o poder constituído da Autoridade Nacional Palestina. Abu Mazen, ao menos, dá sinais de que não é um Arafat — que negociava com uma das mãos e armava homens-bomba com a outra.

Seja como for, num mundo até certo ponto aborrecido e marcado por lideranças de notável covardia, Sharon fez a diferença. Tomara que continue nessa trilha. Quando menos, serviria para evidenciar que o terrorismo islâmico dispensa os mártires palestinos para existir. A ocupação israelense só lhes dá um motivo verossímil para a sua tara homicida. Não fosse esta a sua "causa", seria outra. Osama bin Laden tem um traço ao menos de honestidade intelectual em seu delírio assassino: ignora solenemente a questão palestina. Seus inimigos, ele declara, são "os cruzados (cristãos) e os judeus". Menos mau sabermos com que estamos lidando.

Ainda que sobreviesse a paz israelo-palestina, seria tolice imaginar que o Ocidente estaria mais seguro e livre de novos ataques. Isso não implicaria um arrefecimento do terrorismo islâmico fora do Oriente Médio. A questão já se tornou pequena para os seus anseios. Infelizmente, ela só forneceu uma tecnologia ideológico-religiosa para o crime: os homens-bomba, que ganharam quase a força de um elemento teológico no islamismo contemporâneo.

Covardias
Aproveito para lamentar a covardia, especialmente dos europeus, no que respeita às eleições havidas no Iraque, as primeiras com características democráticas num país árabe. A aposta geral, basta ver o noticiário (também o brasileiro), era a de que o pleito seria um enorme fracasso e que os iraquianos não estavam minimamente interessados no processo. Foi uma mentira flagrante. As pessoas queriam votar.

Mas e daí? Há tanta disposição de se declarar o fracasso dos EUA no Iraque e de condenar a guerra, que os fatos deixam de ter importância. É claro que isso não significa que a situação seja tranqüila. Não é e não será por muito tempo ainda. Mas se dá um primeiro passo. O que acho moralmente indecente é falar do país como se, antes da presença americana, houvesse por lá o paraíso e não o reino do terror. E, se espaço de indignação me sobrar, baixo o sarrafo, de novo, nos europeus, em especial nos franceses, que conduziram, à sua maneira, as negociações com o Irã. O aiatolás estão a caminho de ter o seu artefato nuclear. E com um notório tarado no poder. Como se vê, Bush é mesmo uma ameaça para o mundo. Quem sabe das coisas é Chirac, que leva olé até de baderneiros magrebinos.

A sorte, acho eu, é que Israel, aquele de quem falo lá no início, se preciso, deixará claro que o Irã não pode — e não vai — ter a bomba. Alguém, no fim das contas, tem de ter coragem, não é mesmo? Sempre foi esse o tema deste artigo.

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 28 de dezembro de 2005.

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