FSP
A intervenção recente do Banco Central nos mercados de câmbio, provocando a desvalorização de mais de 10% do real, recolocou a questão do regime cambial brasileiro no centro das discussões. Ficou claro para o mercado que, nessa ação, não havia apenas o objetivo de aumentar nossas reservas cambiais, como sempre afirmaram os diretores da instituição. Nossa autoridade monetária queria interferir no nível da taxa de câmbio.
Daí a pergunta que não quer calar: afinal, temos um regime de câmbio totalmente livre ou deve também o BC interferir na trajetória do real? Nesse caso, qual é o melhor caminho a seguir: deve haver um sistema de flutuação suja, sem um compromisso com uma taxa mínima de câmbio? Ou deve o BC agir de forma sistemática, com um nível de câmbio mínimo, para garantir a competitividade de nossas exportações?
Para tentar responder adequadamente a essas indagações precisamos, inicialmente, aprofundar o conhecimento sobre o mercado de câmbio no Brasil nos últimos anos. Poucos analistas perceberam corretamente as mudanças que estão ocorrendo no balanço de pagamentos, em razão da abertura da economia, e a melhora extraordinária de nossa situação de solvência externa. O aumento impressionante do fluxo comercial e uma certa estabilidade no movimento de capitais financeiros coloca a questão de nosso regime cambial no topo das decisões de política econômica. Ressalto aqui algumas das estatísticas que comprovam essa nova dinâmica no mercado de câmbio.
Nos 12 meses terminados em dezembro de 2001, as operações cambiais relativas às exportações e importações atingiram US$ 105 bilhões. Nos 12 meses terminados em outubro de 2005, esse número passou para US$ 186 bilhões. Houve aumento de 77%, ou US$ 81 bilhões em quatro anos. Nesse mesmo período, o saldo entre exportações e importações passou de US$ 10,7 bilhões para US$ 47,3 bilhões, com aumento de 342%.
No segmento financeiro, onde são contabilizados os dólares relativos a operações da conta de capital e de serviços da conta corrente, os volumes também apresentaram crescimento expressivo. Embora inferior ao apresentado no mercado de câmbio de exportação e importação, nos 12 meses terminados em outubro passado os negócios no segmento financeiro foram 40% maiores do que os verificados em 2002.
Essa internacionalização crescente de nossa economia, tanto na dimensão comercial como na financeira, tem provocado mudanças estruturais fundamentais no mercado de câmbio, afetando as tradicionais ligações entre a taxa de câmbio e o funcionamento de mercados importantes. Com isso, relações que prevaleceram imutáveis por décadas estão sendo alteradas sem que a grande maioria dos agentes econômicos, inclusive analistas de mercado, se aperceba desse fenômeno.
Outro aspecto importante é a participação crescente de agentes financeiros internacionais em nossos mercados de ativos, que está colocando em xeque antigos dogmas e padrões de comportamento. Há um processo de transformação do real em moeda confiável -hoje ele é um componente importante da cesta de moedas de emergentes ligados à exportação de commodities- que deve se aprofundar na medida em que nossas contas externas se consolidem. A intervenção do Banco Central via compra de dólares no mercado spot apenas aprofunda esse processo, na medida em que melhora de maneira monotônica a solvência externa via aumento das reservas líquidas. Mais intervenção, mais reservas, melhor solvência e maior atratividade de nossa moeda, inclusive em razão de juros internos percebidos como elevados em um contexto de desaceleração da economia, formam um círculo a princípio virtuoso, mas que pode se transformar em problema grave em futuro próximo.
O mercado de câmbio de hoje está influenciado, portanto, por um excedente de moedas fortes em razão do superávit em conta corrente e da arbitragem entre os juros internos e os juros internacionais. Em 2005, e provavelmente em 2006, o excedente de dólares em nosso balanço de pagamentos gerado pelo saldo de conta corrente e FDI deve chegar a mais de 4% do PIB, ou seja, US$ 30 bilhões. Por incrível que pareça, estamos hoje afogados em dólares. A defesa por parte do BC de um patamar mínimo para a taxa de câmbio não vai resolver o problema, principalmente enquanto estiver desconectada de uma estratégia mais ampla para a política econômica.