Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 25, 2005

Governo amplia Bolsa Família, mas não ajuda beneficiário a gerar renda

OESP
Executivo não consegue articular combate imediato à pobreza com políticas de desenvolvimento sustentável

Roldão Arruda

O Brasil vem aperfeiçando há mais de uma década suas políticas de transferência de renda. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, elas ganharam amplitude, sobretudo por meio do Bolsa Família, cujos recursos quase dobraram em três anos. Passaram de R$ 3,3 bilhões em 2003 para R$ 6,5 bilhões em 2005 e vão continuar crescendo em 2006. No total são 8,7 milhões de famílias beneficiadas, o equivalente a 35 milhões de brasileiros – o que tem levado analistas de políticas sociais a concluir que a máquina de transferência de renda ganhou força. O que preocupa estes analistas agora é outra questão: o que o governo tem feito para ajudar essas famílias a se desenvolver com seus próprios recursos e a deixar o guarda-chuva dos programas sociais?

Muito pouco – é a resposta mais freqüente. De acordo com especialistas ouvidos pelo Estado, até agora o governo não conseguiu articular o combate imediato à pobreza com políticas eficazes de desenvolvimento sustentável. Em outras palavras, estaria alargando as portas de entrada dos programas de socorro, sem desobstruir as de saída.

Na opinião do sociólogo José Arlindo, professor da Universidade Federal da Paraíba e estudioso do assunto, um bom exemplo para se compreender como o socorro às famílias pobres só dá certo quando acompanhado de programas de desenvolvimento são os assentamentos rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário. "Por falta de políticas adequadas, a maior parte das famílias assentadas ainda não chegou à fase produtiva", diz. "Mesmo depois dos investimentos públicos para assentá-las, continuam dependendo de cestas básicas e de programas como o Bolsa Família para sobreviver."

Segundo ele, que chefiou a Secretaria do Planejamento do Estado de Pernambuco, a convite do governador Jarbas Vasconcelos (PMDB), o ideal é criar políticas de desenvolvimento de acordo com as necessidades de cada comunidade. No caso das famílias assentadas, necessitam de assistência e meios para produzir mais, agregar valores aos produtos e chegar aos centros de comercialização.

ORDENHA

Durante experiência de apoio ao desenvolvimento sustentável que Pernambuco desenvolveu nos 11 municípios mais pobres do Estado, com recursos de instituições internacionais, José Arlindo ficou impressionado com a história de três comunidades rurais que tinham boa produção leiteira, mas não conseguiam comercializá-la adequadamente. "Descobriu-se que precisavam de recursos para comprar resfriadores de leite", conta. "Por falta desses equipamentos, perdiam grande parte da produção entre a ordenha e a comercialização. No final, se uniram, obtiveram os recursos para comprar os resfriadores e melhoraram sua condição de vida." E por que isso não acontece com freqüência? Arlindo acredita que o principal motivo é a ausência de uma política de estímulo ao desenvolvimento das comunidades pobres. A ausência dessa política, diz ele, faz com que os ministérios ajam de forma isolada, sem articulação, como em outros governos.

No semi-árido nordestino há pelo menos 5 ministérios diretamente empenhados em ações destinadas a aliviar a miséria. Mas freqüentemente trombam. "O ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, não fala com o Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, que fala pouco com outros ministérios, enquanto todos são ignorados pelo Planejamento e atropelados pela Fazenda", comenta.

PONTEIROS

A desarticulação se repete em escala nacional. Um exemplo são os programas de inclusão produtiva dos ministérios do Trabalho e Desenvolvimento Social. Embora tenham os mesmos objetivos, as duas pastas não acertam os ponteiros.

O economista Cláudio Dedecca, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que a transferência de renda pode atenuar a fome a curto prazo. Mas só consegue efeitos duradouros se for acompanhada de programas estruturais de desenvolvimento, articulados entre os ministérios. "Sem criar condições para que as comunidades criem renda, tenham acesso à educação e à informação, o governo vai ter que transferir renda eternamente", diz o economista. Elecritica a falta de uma política clara de desenvolvimento sustentável e a fragmentação das ações entre os ministérios: "Uma vez que a definição dos cargos de ministros depende de barganhas e negociações para a construção da base política do governo, cada ministro vai tocando sua própria política. Para piorar, neste governo tudo está subordinado à política econômica."


Estudiosos criticam políticas sem articulação

Uma das questões mais recorrentes nas conversas com estudiosos do combate à pobreza é a desarticulação das políticas sociais e de desenvolvimento tocadas por diferentes instâncias de governo. Segundo o pesquisador José Maria da Silveira, do Instituto de Economia da Unicamp, para onde quer que se olhe é possível encontrar ações que se sobrepõem e não se articulam.

O ideal seria que um programa potencializasse o outro. Na zona rural, as medidas de combate à fome dariam mais resultados se fossem articuladas com o crédito fundiário, programas de incentivo à agroindústria, construção de estradas. "No interior da Bahia, uma comunidade carente de energia elétrica teve recursos para a instalação de células de captação de energia solar", diz Silveira. "Era uma forma de estimular o desenvolvimento local. Mas, depois de certo tempo de uso, quando as células se desgastaram e quebraram, foram abandonadas porque esqueceram de articular a compra do equipamento com algum programa de governo que favorecesse a reposição das peças."

Outra questão recorrente é a dificuldade que os governos têm para ouvir comunidades carentes. "Não se pensa em política de atendimento às comunidades mais pobres como política emancipatória", diz o sociólogo Rudá Ricci, professor da PUC de Minas e coordenador do Instituto Cultiva.

Para o pesquisador Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia e Administração da USP, quanto mais os grupos interessados participarem dos processos de mudança, maiores são as chances de os resultados serem favoráveis. "O debate de projetos para suprimir a pobreza não pode envolver apenas ONGs, governos e representantes dos pobres", diz ele. "É preciso ampliar os horizontes sociais, envolver outros setores, como as associações comerciais e empresariais, os estudiosos."


Para ministério, programa estimula crescimento
Segundo secretária-executiva, governo está agindo para unificar e potencializar as ações

Pelo volume de recursos que movimenta e pelo seu longo alcance, o programa Bolsa Família já consegue ter impacto na economia das comunidades mais pobres do País e estimular o desenvolvimento. É o que afirma a secretária-executiva do Ministério do Desenvolvimento Social, Márcia Lopes. "Pela sua amplitude e pela sua escala, o programa já começou a alterar uma realidade que há muito tempo não se alterava."

Ela reconhece que ainda existem problemas, como a fragmentação de políticas sociais entre os diversos ministérios. Mas enfatiza que o governo está agindo para unificar e potencializar os programas existentes, com bons resultados.

Um dos exemplos citados por ela é a associação entre as ações de combate à fome com as de fortalecimento da agricultura familiar, num programa que envolve os ministérios de Desenvolvimento Social, Agricultura e Desenvolvimento Agrário. "Aumentamos o volume de compras diretas dos agricultores familiares, para abastecer os programas de segurança alimentar. Na Paraíba, o volume de litros de leite adquiridos subiu de 20 mil para 120 mil por dia. Em 2006, o orçamento para compra direta de produtor em todo o País vai chegar a R$ 250 milhões. Isso terá um impacto importante no desenvolvimento das comunidades locais."

Outro exemplo de ação para a unificação das ações foi a criação de um cadastro único para todas as famílias beneficiadas por programas de transferência de renda e assistência social. "Tínhamos cinco cadastros em vigor quando assumimos o governo. Era quase impossível ter um controle de todas as ações. Agora temos só um cadastro ativo." De acordo com Márcia, está cada vez mais bem afinada a relação entre o Bolsa Família e os programas de saúde e educação. "As crianças ficam mais tempo nas escolas e o perfil epidemiológico das comunidades está mudando."

Ela diz que mais de 50 universidades públicas estão envolvidas no trabalho de mapear o potencial das comunidades mais pobres e propor iniciativas de desenvolvimento sustentável. Com recursos do Finep, as universidades também montaram incubadores tecnológicos para o atendimento de cooperativas populares.

O ministério investe na capacitação gerencial. "Aumentamos o volume de recursos para o programa e queremos melhorar a gestão desses recursos. Estamos estimulando consórcios de gerenciamento com a participação de grupos de municípios."


Uma realidade, duas perspectivas
No sertão pernambucano, duas famílias pobres que recebem o benefício dão rumos diferentes às suas vidas

Angela Lacerda
ENVIADA ESPECIAL
IBIMIRIM

José Reinaldo de Lira e Cícera Bezerra dos Santos, ambos de 39 anos, têm muito em comum: são pequenos agricultores de Pernambuco e dependem do Bolsa Família (R$ 45,00 por mês) para sobreviver. Mas, enquanto Lira "vai vivendo como Deus quer" por falta de espírito empreendedor, Cícera reconhece, com orgulho, que está conseguindo prosperar e sonha em dar o benefício que recebe para quem precise mais. São dois retratos de beneficiários do maior programa social do governo – o primeiro sem perspectivas de futuro e o segundo com chances de dar certo.

Magro, franzino, ar abatido, casado, quatro filhos pequenos – o mais velho tem 9 anos –, Lira já deixou a agrovila Cinco, onde mora, no interior de Ibimirim, no sertão, a 333 Km do Recife, duas vezes, fugindo da seca, em busca de trabalho em São Paulo. Na primeira vez, há 10 anos, "não mandou nem pipoca" para casa, atesta a mulher, Quitéria Maia de Oliveira de Lira, de 33 anos. Na segunda, há três anos, ele conseguiu enviar "um pouquinho" para os filhos.

Nas duas tentativas de melhorar de vida, Lira foi para Matão, interior paulista, para trabalhar na roça. "É só o que sei fazer." Agora ele não quer mais sair de Ibimirim, um dos 11 municípios pernambucanos com o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado. Adoentado, ainda tem mais sorte do que milhares de sem-terra. Tem um pedaço de chão e uma casinha. Quando o inverno (época de chuva) é dos bons, planta milho e feijão-de-corda – o que dá para a família comer durante alguns meses.

Ele mora nas proximidades do Açude Poço da Cruz, que já foi o maior de Pernambuco, secou e voltou a encher com as fortes chuvas do início do ano passado. "A gente vive da boa vontade da natureza. Com o açude cheio nós nos animamos."

Mas não há data para a água do açude irrigar a agrovila. Quando chegar, através de um canal, Lira pensa em plantar também tomate e melancia. Com muito agrotóxico, senão "não vinga". Ele e a família vivem "desse negocinho" do Bolsa Família, por isso não passam fome. Quando aparece serviço nas terras dos outros, ele recebe R$ 10 por um dia duro na enxada. Se não, corta algaroba – uma das árvores que resistem à estiagem – para fazer lenha e vender. Embora possua um lote de três hectares, a terra não é trabalhada por falta de água, sua saúde não é boa e os filhos não têm idade para ajudar.

Em Águas Belas, 308 Km do Recife, Cícera Bezerra dos Santos, casada com José Ademílton Bezerra dos Santos, de 38 anos, quatro filhos, uma casinha, um chão de cerca de quatro hectares, duas vacas, acorda às 4h. O marido arranjou um bico numa roça próxima. Com ajuda do filho José Renato, de 13 anos, tira leite das duas vacas que comprou, com juros subsidiados, por intermédio do Sindicato dos Trabalhadores do município. Corta palma para alimentar os bichos, busca água, prepara o almoço no fogareiro.

No final do dia, Cícera conserta ou faz alguma roupa para os meninos. Sonha em ter uma máquina melhor e fazer um curso de corte e costura.

Ela recebe o bolsa-escola de duas crianças – José Renato e Samara, 8 anos – e o vale-gás. "Um dia, quando a gente progredir mais, vou dar o meu Bolsa Família para outro que precise, mas por enquanto é um dinheiro que não se pode dispensar", diz ela, ao lembrar que as vacas ainda precisam ser pagas e na época de seca tudo piora. Até pouco tempo, o pouco leite tirado dos animais era vendido a um atravessador. Com o resfriador colocado nas proximidades de casa, Cícera recebe por quinzena, mas por um preço muito melhor. "O carreteiro pagava R$ 0,30 o litro, com o resfriador a gente recebe R$ 0,47 o litro da associação."

Um total de 634 famílias participa da Associação dos Criadores e Produtores de Leite de Águas Belas. Onze dos resfriadores foram doados recentemente pelo governo estadual; os outros foram comprados pela comunidade com financiamento do Banco do Brasil. Com o equipamento, os produtores não precisam se submeter a qualquer preço oferecido por intermediários, nem perdem o leite, pois têm como armazenar o produto, que é comercializado para as fábricas de leite.

Cícera reconhece, com orgulho, que está conseguindo prosperar. "Nunca um filho passou fome." Há pouco tempo o dinheiro que juntava para pagar o empréstimo foi gasto com o caçula, Rafael, de 3 anos, que adoeceu. O menino ficou bom. As finanças ainda não se recuperaram. Mas ela não desanima. Levanta as mãos ao céu, agradece o que tem e pede mais.



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