Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, dezembro 29, 2005

Merval Pereira Soy loco por ti, América

O GLOBO

A antecipação do pagamento da dívida ao FMI, que o presidente Lula apresenta como uma espécie de libertação do país de uma suposta dominação externa, tem valor meramente simbólico para as contas do país, mas faz parte de uma estratégia de política externa que está descrita em um paper de julho de 2004 do secretário-geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Quando o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, anunciou que também anteciparia o pagamento ao Fundo, disse que aquela era uma estratégia do Mercosul, combinada com o presidente Lula. Que ontem repetiu pela enésima vez nos últimos dias que, com a medida, mostramos que "somos donos do nosso nariz".

A decisão, simbólica para o Brasil, é claramente ideológica para a Argentina, que não tinha condições econômicas de fazer a bravata. Mas a decisão conjunta dos dois países é uma inflexão política do Mercosul, que passaria a ser um instrumento de afirmação da região frente aos Estados Unidos.

De fato, no documento "O papel político internacional do Mercosul", Pinheiro Guimarães diz que o Mercosul (e a Argentina e o Brasil) enfrentam três desafios de curto prazo no processo de articulação de um papel político autônomo no sistema mundial multipolar em gestação:

a) resistir a uma absorção na economia e no bloco político norte-americanos, que está avançando rapidamente, de maneira disfarçada, por meio das negociações da Alca e dos TLCs e da dolarização gradual;

b) enfrentar uma possível intervenção militar externa na Colômbia e eventualmente em toda a região amazônica;

c) recuperar o controle sobre suas políticas econômicas, doméstica e externa, no momento sob controle do FMI (e da OMC).

Segundo o embaixador, a construção "paciente, persistente e gradual da união política da América do Sul" e uma recusa "firme e serena" de políticas que submetam a região aos interesses estratégicos dos Estados Unidos tem que ser o objetivo da nossa política externa, e o Mercosul "é um instrumento essencial para atingir esse objetivo".

Pinheiro Guimarães ressalta que "Mercosul significa Brasil e Argentina, da mesma forma que União Européia significa Alemanha e França e Nafta significa Estados Unidos e Canadá". E sem uma cooperação próxima entre Brasil e Argentina, "a ação política coordenada do Mercosul e, mais ainda, uma ação política comum na América do Sul, seriam uma total impossibilidade".

O embaixador faz críticas à falta de coordenação política do Mercosul e diz que "é possível concluir que os esforços de coordenação política dos países do Mercosul têm sido mais bem-sucedidos com relação a dois tópicos de especial interesse para os objetivos da política dos Estados Unidos na região: o desarmamento dos países da região e a manutenção de regimes formalmente democráticos, transparentes e abertos à influência externa, nos planos político e econômico".

Ele diz que a chamada "cláusula democrática" do Mercosul "é um desvio do tradicional princípio sul-americano da não-intervenção em assuntos internos e pode gerar, no futuro, questões delicadas no momento de sua implementação, com sua aplicação seletiva e manipulada por pressões externas".

Pinheiro Guimarães afirma em seu documento que é preciso "redefinir uma visão conjunta do mundo e do papel da América do Sul nesse mundo. Brasil, Argentina e Mercosul precisam enfrentar o fato de que o sistema real é mais um sistema de natureza conflitiva, altamente competitiva e violenta, com uma forte e crescente concentração e cristalização de poder".

É dentro dessa perspectiva que deve ser analisada a recente entrada da Venezuela de Chávez como membro pleno do Mercosul, a convite de Lula e Kirchner, e a possibilidade de a Bolívia de Evo Morales vir a ter o mesmo status.

O ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa, um dos negociadores do processo de integração do Mercosul, hoje diretor de comércio exterior da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), ressalta que um dos desafios centrais do Mercosul é sua institucionalização. Para fortalecer o poder de barganha do bloco em negociações internacionais, o projeto precisa incluir uma política comercial comum. Como ficam este projeto político e a política comercial comum no Mercosul com a Venezuela?

O embaixador Rubens Barbosa desconfia que será um Mercosul mais distante da Alca, e mais próximo do que chama de "populismo radical". O papel do Brasil ganhará destaque, na medida em que Lula representa uma "esquerda democrática" na região que terá, no decorrer dos próximos meses nada menos que 12 eleições em países como Chile, Nicarágua, Peru, Colômbia, Venezuela, México e Brasil. A tendência é que a região continue sua inclinação política para a esquerda, com governos "profundamente antiamericanos", na definição do professor Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ.

Já para o professor Nelson Franco Jobim, do Centro de Estudos das Américas da Universidade Cândido Mendes, as eleições serão decisivas para o futuro próximo da região, que ficou para trás da Ásia e da Europa Oriental em crescimento econômico. Isto gera um ressentimento antiglobalização, anticapitalista e antiliberal. Cerca de 40% dos latino-americanos vivem na miséria.

Com tamanha frustração social e relativa estagnação econômica — os índices de crescimento da América Latina estão muito abaixo dos da Ásia e da Europa Oriental -— a tendência do eleitorado é votar na esquerda, concorda Jobim. Mas ele acha que apesar da estridência cada vez maior do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a maior tendência é de continuidade do que a revista inglesa "The Economist" chama de "Consenso pós-Washington", uma combinação de estabilidade macroeconômica com aumento dos gastos sociais.


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