Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, novembro 03, 2005

MIRIAM LEITÃO Não-amestrados

o globo

Os jornalistas fizeram perguntas ao presidente Lula sobre Cuba. Lula achou um absurdo que eles não se ativessem à Jamaica, que ele, Lula, considerava ser o assunto oportuno no momento. Chamou os repórteres de mal-educados. Depois eles foram repreendidos por um assessor que disse que o presidente considerava "inaceitável" o comportamento dos jornalistas.
Inaceitável é o comportamento do presidente e do governo dele. Deu apenas uma entrevista coletiva durante três anos, tentou expulsar um jornalista americano, tentou aprovar um conselho para censurar a imprensa e uma agência para ameaçar os meios de comunicação, concedeu uma entrevista com cara de coisa arranjada em Paris, seu então ministro das Comunicações, Luiz Gushiken, disse que jornalistas têm de dar notícias otimistas, multiplicou as publicações e órgãos oficiais, transformou a Agência Nacional em centro de propaganda e demonstra por atos e palavras que não entendeu até agora por que os governantes devem falar com os jornalistas.


Governantes não falam com a imprensa porque gostam dos jornalistas. É aceitável que o presidente Lula não goste. Falar com jornalistas é um dos meios de prestação de contas à sociedade. O governo Lula já pode ser considerado o mais autoritário do período democrático no trato com a imprensa. E disputa cabeça a cabeça com alguns do regime militar.

O presidente João Figueiredo não gostava de jornalistas, em particular, e do povo, em geral — tinha preferência por cavalos — mas sempre respondia a perguntas quando abordado em solenidades do Itamaraty e em viagens internacionais. Na falta de uma rotina democrática de entrevistas, essas abordagens, anárquicas, eram a única forma de entrevistá-lo. Participei de várias dessas entrevistas arrancadas pelos nossos maus modos. Uma das vezes, no Paraguai, tive os documentos retidos pela polícia de Stroessner, que achara meu comportamento, de abordar o presidente Figueiredo, inaceitável. O ex-ministro da Comunicação Social Said Faraht resgatou meus documentos e a noção do que era aceitável ou não.

Tim Padgett, outro dos vencedores deste ano do prêmio Maria Moors Cabot, da revista "Time", num dos debates em Nova York, disse que tem mais facilidade de falar com Hugo Chávez do que com as autoridades petistas.

— Lula não dá entrevista. Na época de (Fernando Henrique) Cardoso, tínhamos mais informação, mas com Lula no governo somos tratados como gringos dos quais querem distância. A ironia é que quando estavam na oposição eram bem acessíveis.

Numa reunião no "New York Times", ouvi referência ao episódio da quase expulsão do correspondente Larry Rohter, como exemplo da dificuldade de atuar na América Latina. Lembrei que essa estranha idéia fora do presidente Lula e dos seus assessores de imprensa, mas que a sociedade brasileira e os jornalistas haviam reagido instantaneamente contra o ato autoritário, forçando o governo a recuar.

Liberdade de imprensa é algo a ser conquistado e ampliado sempre. É uma longa caminhada, onde às vezes ocorrem retrocessos. No ranking do Repórteres Sem Fronteiras, os Estados Unidos caíram vinte pontos, para o 44 lugar, por causa da prisão da jornalista Judith Miller e iniciativas do governo Bush para pressionar jornalistas a evitar coisas como as fotos dos mortos no Iraque. No Canadá também ocorreram pressões judiciais contra jornalistas para que eles divulguem suas fontes, e o país também caiu para o 21 lugar. O temor é que isso inaugure uma era de destruição da prerrogativa do jornalista de manter reservada a identidade das fontes. O direito inclui o dever do jornalista de evitar a manipulação, como a que ocorreu com alguns jornalistas americanos em relação à suposta existência de armas de destruição em massa no Iraque. O Brasil está no 63 posto — também caiu no último ano. Classificações mundiais são sempre bem discutíveis, mas a do Repórteres Sem Fronteiras é feita por 14 instituições de defesa da liberdade de imprensa, que usam informações de 130 correspondentes no mundo inteiro.

No Brasil, há muitas ameaças, além das diversas insinuações autoritárias do governo, à liberdade da imprensa regional, por parte dos grupos de interesse e econômicos locais. O repórter paraense Lúcio Flávio Pinto foi um dos escolhidos este ano para o prêmio International Press Freedom do Committee to Protect Journalists em Nova York, no próximo dia 22. Lúcio Flávio não pode viajar para receber porque está respondendo a 18 processos. A maioria movida pela família Maiorana — ele foi vítima até de agressão física por parte de Ronaldo Maiorana — e outro processo de Cecílio Rego de Almeida, que alega ser dono de uma extensa área na Terra do Meio. O Brasil vai fazer um papelão no Waldorf Astoria, diante da imprensa internacional, se Lúcio Flávio for impedido de ir.

Há muito ainda o que caminhar no Brasil. Nessa caminhada, jornalistas, por vezes, serão considerados mal-educados por governantes que preferem os amestrados. O grande risco é o governante sem a devida educação institucional. Uma jornalista francesa, Adèle Toussaint-Samson, que viveu alguns anos no Brasil no século XIX, publicou suas impressões, em capítulos, no "Figaro". Alguns brasileiros acharam os textos inaceitáveis e pediram a D. Pedro II que pressionasse o jornal. Ele se negou a fazer isso e explicou que "os povos, como os indivíduos, não podem julgar a si próprios". Um governante educado!

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