Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 20, 2005

MERVAL PEREIRA Recalques e Ambiguidades

O GLOBO

Recalques

Se a disputa eleitoral já estava informalmente nas ruas há muito tempo, na disputa política que se trava entre um governo em campanha permanente e a oposição dividida entre o desejo de deixar Lula sangrando em praça pública até derrotá-lo nas urnas e o receio de que, mesmo ferido, ele consiga chegar aos palanques e renasça das cinzas qual uma fênix populista a reboque das 11 milhões de famílias do Bolsa Família, ontem ela começou oficialmente.

Não apenas porque o PSDB elevou o tom de suas críticas, tendo à frente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas principalmente porque o presidente Lula, num delicioso ato falho, revelou seu segredo de Polichinelo: vai ser mesmo candidato à reeleição.

O presidente se empolgou em uma entrevista a radialistas e entregou o jogo: "Gosto do debate, adoro um debate, gosto de polêmica. É bonito. O povo vai se politizando. O povo vai ensinando a gente. É assim que penso. E vou, sim, disputar as eleições", disse Lula, citando o Bolsa Família e o biodiesel como "armas" do governo na campanha.

O ato falho é definido como o aparecimento, na linguagem falada ou escrita — no caso de Lula, só podia mesmo ser na falada — de termos inapropriados que remetem para conteúdos ou desejos recalcados. Quer dizer, o presidente Lula tem um desejo recalcado de se reeleger, e acha que consegue esconder esse seu "recalque" da opinião pública.

Depois do "ato falho", o presidente Lula voltou a falar contra a reeleição com o governador de Alagoas Ronaldo Lessa, a quem se declarou a favor de um mandato de cinco anos, em vez da possibilidade de oito anos que a reeleição dá aos presidentes brasileiros. Já houve anteriormente uma tentativa de movimento, defendido entre outros pelo deputado Delfim Netto, de prorrogar para cinco anos o mandato de Lula, e acabar com a reeleição.

A tese teria teoricamente o apoio de governadores, deputados e vereadores, que teriam também seus mandatos prorrogados. Mas o movimento não chegou a decolar naquela ocasião, e dificilmente teria melhor sorte hoje, com a situação política radicalizada como está.

Outro "recalque" que Lula não consegue esconder é em relação ao ex-presidente Fernando Henrique, que ontem deu o tom da oposição com a dureza de seu discurso e com os risos desabridos com as piadas de cômico cearense Tom Cavalcanti que, imitando Lula à perfeição — papel que certamente desempenhará na campanha eleitoral — levou a platéia de tucanos ao delírio.

O próprio FHC já cometera um "ato falho" durante um jantar com a cúpula tucana no ano passado, "ato falho" esse que, na ocasião, muitos consideraram que poderia ser mais do que isso. Ao falar sobre presidencialismo nos Estados Unidos, Fernando Henrique elogiou o ex-presidente Bill Clinton, sua carreira, que considera brilhante, e lamentou: "O presidente nos Estados Unidos, depois de ser presidente duas vezes, não pode ser mais nada. Aqui no Brasil não". De lá para cá, embora a especulação continue viva, fica cada vez mais claro que ele não será o candidato, mas o grande eleitor do PSDB, para o bem e para o mal.

Se havia alguma dúvida de que a campanha se travará entre Fernando Henrique e Lula, ela se dissipou ontem. Quatro presidenciáveis do PSDB estavam no palco da convenção — o novo presidente Tasso Jereissati; o governador de Minas Aécio Neves; o governador paulista Geraldo Alckmin e o prefeito paulistano José Serra — mas foi Fernando Henrique quem dominou a cena e monopolizou os ataques dos governistas.

Há uma tese sendo debatida entre os tucanos de que o prefeito José Serra, mesmo sendo o único a aparecer como possível vencedor de uma disputa com Lula, por ter sido ministro de Fernando Henrique, representaria o passado do PSDB e seria mais exposto a comparações entre os dois governos. Ao passo que Alckmin, até mesmo por ser um completo desconhecido fora de São Paulo, representaria algo novo para o eleitorado, o futuro do PSDB e teria condições de crescer junto ao eleitorado.

Desde ontem ele já não tem esse argumento na sua disputa com Serra — tanto Tasso quanto Aécio são forças políticas ponderáveis e aliados na tentativa de tirar o peso acachapante que os paulistas têm dentro do partido, mas não disputam para valer a indicação. Ontem ficou claro que a base da campanha petista será a comparação com os oito anos de Fernando Henrique, seja qual for o candidato. O que já aconteceu no depoimento do ministro Antonio Palocci na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado dias atrás.

Mesmo tendo todo o cuidado para não ofender os tucanos, que, afinal, o estavam tratando com toda a consideração, Palocci desfiou números da economia que, nas mãos de um governista mais empedernido, trariam embutidos críticas às gestões anteriores. Palocci, ao contrário, falou em "processo", reconhecendo a importância dos passos que foram dados anteriormente. Não só irritou Lula com esse comportamento "politicamente correto", como não refletia as tintas de guerra com que serão feitos os programas petistas.

O "processo" da política econômica a que se referiu Palocci se transformará em criação original do petismo. O presidente "entendeu" a situação de Palocci, que tinha que agradar aos oposicionistas, mas já há petistas prevendo que os tucanos vão usar nos programas eleitorais os elogios de Palocci ao Plano Real e à Lei de Responsabilidade Fiscal, para quebrar a unidade das críticas.

E os petistas não terão a compensação de também usar os elogios dos senadores tucanos à política econômica de Lula, pois ela será, ao mesmo tempo, o trunfo e o calcanhar de Aquiles da campanha pela reeleição.

Ambiguidades

A atitude ambígua do presidente Lula em relação ao Ministro da Fazenda, Antonio Palocci, tem razões pessoais e razões políticas. Não agrada ao presidente ver Palocci apontado pela oposição como o grande avalista da estabilidade política do país, assim como não agradava ver José Dirceu ser apontado como o verdadeiro chefe de governo. Por isso, ter a ministra Dilma Rousseff representando setores do PT e do Ministério na reivindicação de mais verbas para investimentos faz bem ao equilíbrio interno do governo, na sua avaliação. O fato é que o presidente Lula já não defende tão ardorosamente a política econômica de Palocci como já fez, mas não tem uma alternativa segura para contestá-la.

Mas ele precisa entrar na campanha eleitoral dando uma esperança aos militantes petistas que permaneceram no partido de que o segundo mandato será diferente, e que tirará da cartola, finalmente, o tão sonhado — pelos petistas mais radicais — plano B. Por isso está dando corda à ministra Dilma Rousseff, que vocaliza as reivindicações das bases petistas por uma mudança de rumos na economia. O fato de ter elogiado Dilma Rousseff pelo programa de biodiesel não quer dizer, necessariamente, que estava endossando suas críticas ao projeto de ajuste fiscal de longo prazo defendido pelo ministro Antonio Palocci.

Mas, como em política as aparências valem mais do que os fatos, o momento que Lula achou para elogiar a ministra Dilma Rousseff levou a interpretações de que estava endossando suas críticas. O que, tudo indica, não teria sido um erro de cálculo do presidente, mas uma estratégia premeditada. Além do mais, esse projeto, mesmo que tecnicamente seja correto, não é politicamente viável em um ano eleitoral.

Uma das críticas a ele é justamente ser extemporâneo do ponto de vista do momento político petista. Se uma sinalização de ajuste para dez ou 15 anos seria tranqüilizadora para os setores financeiros, levantar esse assunto às vésperas da eleição é um prato cheio para a oposição, que já começou a criticar o que seria um exagerado conservadorismo da equipe econômica.

A condescendência do presidente Lula com as críticas públicas de Dilma Rousseff ao projeto de Palocci dá a ela um poder de contestar a política econômica que não havia sido dado a nenhum outro ministro, mesmo quando José Dirceu era todo-poderoso. Ao declarar, na entrevista às rádios de sexta-feira, que quando há divergências no governo ele reúne os ministros discordantes e determina qual é a "política pública" do governo, Lula, simplesmente deixou no ar a sugestão de que a política econômica de Palocci não tem ainda status de "política pública", ainda está em discussão. Com o agravante de que o próprio Palocci disse que estava no governo para realizar "esta política econômica, e não outra".

Na verdade, o presidente Lula não tem nenhuma intenção de mudar a política econômica, e caberá ao ministro Antonio Palocci ter paciência nesse processo eleitoral para seguir tocando o barco como considerar mais adequado. Caso fizesse uma inflexão na política econômica, Lula entraria no ano eleitoral novamente sob suspeita do mercado internacional e isso se refletiria imediatamente nos números da economia.

Tirar o ministro Palocci por problemas de sua administração em Ribeirão Preto seria aceitável pelo mercado, desde que o substituto não mudasse a linha central da política econômica. O mais provável é que nada aconteça, mas se houver necessidade de substituir Palocci pela inviabilidade política de ele permanecer no governo diante de novas acusações, ou de um improvável depoimento traumático na CPI dos Bingos, o presidente Lula não tem a alternativa de dar uma guinada na conduta da política econômica.

Além disso, Lula tem outra armadilha pela frente, armada pelo seu hoje arquiinimigo Fernando Henrique Cardoso, que resolveu bater no "alto custo que o país está pagando" pelo que classifica de "ultra-ortodoxia" da atual política econômica, ou seja, o custo PT, que faria com que o país cresça a metade do que os demais países emergentes.

Quando Fernando Henrique critica a política fiscal "apertada a ponto de praticamente eliminar o investimento público federal e comprometer serviços fundamentais", ou quando fala que a combinação de taxa de câmbio, dívida interna elevada, taxas de juros altos e controle da inflação "nos condena a taxas de crescimento medíocres e desemprego estabilizado em nível elevado", está reverberando críticas que a própria oposição faz à equipe econômica.

Não importa se "a dose de juros cavalar" funcionou da mesma maneira em seu governo. Não vai dar para o PT fazer essas críticas à política econômica na campanha presidencial, sob pena de Lula fazer uma campanha esquizofrênica e perder o único trunfo que tem para mostrar: um crescimento econômico acentuado. Há quem preveja que o país estará crescendo a 5% nas proximidades da eleição.

Os próximos meses, portanto, serão de tensão crescente, com a política econômica sendo posta em xeque pela base partidária governista, que anseia por mais verbas para gastar no ano eleitoral que já se iniciou. E Lula terá que continuar em uma posição ambígua, defendendo a política econômica mas abrindo espaços para sua contestação.


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