A desconstrução a que o deputado José Dirceu vem sendo submetido por vontade própria, na luta diária para desqualificar sua atuação à frente da Casa Civil e demonstrar que a figura quase onipresente e onipotente que ele criou para si mesmo não passa de uma mistificação política, tal qual o mito do guerreiro que aprendeu as artes da guerrilha nas selvas cubanas, vem recebendo uma providencial ajuda do Palácio do Planalto, mesmo à revelia do principal inquilino.
Lula já deu todos os sinais de que preferiria uma morte súbita do antigo "capitão" a essa morte a conta-gotas, que acirra os ânimos no Congresso e coloca em suspenso uma solução para a crise política que há meses ameaça atingir o próprio presidente.
A ajuda que Dirceu vem recebendo, de maneira indireta, é ficar demonstrado que ele não era mesmo o único capaz do jogo bruto das articulações políticas, atribuídas a ele muitas vezes por inconfidências dele mesmo, mas que continuam sendo produzidas aos borbotões no Palácio do Planalto, como a confirmar a nova versão de Dirceu sobre ele próprio, o de um simples ministro palaciano sem esse poder todo, que desconhecia as manobras corruptas montadas nos bastidores do poder pelo tesoureiro Delúbio Soares a mando do verdadeiro "chefe".
A eleição de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara, desencavada a liberação de verbas para os mesmos líderes dos partidos envolvidos no mensalão, muitos deles — como Valdemar Costa Neto e o ex-presidente Severino Cavalcanti — já fora do Parlamento, mas fortes o suficiente para continuar recebendo regalias de um Planalto sem constrangimentos, foi a primeira prova de que o governo sabe vencer eleições com golpes baixos desferidos por outros que não o belzebu Dirceu.
Agora, surgem acusações, tanto na Câmara quanto no Senado, de ações sub-reptícias de órgãos de segurança e sindicalistas ameaçando líderes da oposição, na semana seguinte ao atentado político contra o presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, retratado como nazista em cartazes encomendados e distribuídos em Brasília por sindicalistas da CUT. Um clima de guerra suja que recebeu da oposição uma resposta violenta, que pecou até agora pelo emocionalismo, fazendo com que o governo pudesse acusar os partidos oposicionistas de apelarem para uma linguagem não compatível com as normas democráticas.
Dizer que pode até "dar uma surra" no próprio presidente Lula, como disse e repetiu o senador Arthur Virgílio na tribuna do Senado, apoiado na Câmara pelo deputado ACM Neto, que denunciou que está sendo grampeado pelos órgãos de segurança, não dá à oposição as melhores condições políticas para se contrapor ao governo. Usando um tratamento desrespeitoso contra o presidente da República, ou uma linguagem política agressiva no pior estilo da oposição udenista da década de 50, ou mesmo do petismo oposicionista mais exacerbado de anos anteriores, a oposição está dando chance ao governo de se fazer de vítima do destempero dos adversários, em vez de ter que responder conclusivamente às denúncias.
Enquanto vêm do presidente Lula informações de que ele está interessado em acalmar os ânimos políticos, o PT adota a radicalização como tática de guerra e volta a prometer a mobilização das chamadas "forças sociais" para defender o governo, supostamente ameaçado por uma conspiração direitista, da qual faria parte a imprensa. A embaixada cubana ousou até mesmo atribuir ao "imperialismo ianque" as denúncias sobre o ouro de Cuba, num malabarismo digno de um Maradona e indigesto para o governo brasileiro, que recebe o presidente George W. Bush nos próximos dias espremido entre seus "companheiros" latino-americanos que querem, como anunciou Hugo Chávez, mandar "al carajo" a Alca, e o desejo de fazer parte do Conselho de Segurança da ONU, o que não ocorrerá — se ocorrer — sem a ajuda dos Estados Unidos.
Pois todos esses movimentos, envolvendo ameaças de "venezuelização"; suposto uso da Abin para grampear adversários; compra de apoio parlamentar com liberação de verbas; acordos com "mensaleiros" e nomeações políticas estão sendo comandados do Palácio do Planalto sem que José Dirceu tenha movido uma palha, envolvido que está na campanha para acrescentar à sua biografia o rótulo de perseguido político, que será cassado não por ser o "chefe da quadrilha", mas pelo que representa. Não importa que, como bem disse seu antigo companheiro de partido Chico Alencar, ele esteja sendo cassado "pelo que deixou de representar".
A via-crúcis de Dirceu, apelando para todo tipo de expediente protelatório, já está se voltando contra ele. Não consegue comover a opinião pública, e está propositadamente desmontando a imagem que criou para si mesmo, no sonho de convencer as pessoas de que era, no máximo, um aprendiz de feiticeiro. Se ainda estivesse na Casa Civil, estaria sendo acusado por todos esses atos, dos cartazes aos grampos da Abin, passando pela eleição de Aldo Rebelo. Como já não está lá e, muito ao contrário, aparentemente não consegue nem mesmo falar com o presidente Lula para dar-lhe os parabéns no aniversário, está começando a ficar claro que pelo menos não era o único responsável pelo arsenal de maldades de que o governo se utiliza na luta política. Por isso mesmo, o presidente Lula virou o alvo preferencial da oposição, que identifica nele o verdadeiro feiticeiro.
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Na coluna de ontem, quando escrevi que as denúncias contra o PT estavam sendo todas provadas, me referia às denúncias da crise do mensalão, e não ao dinheiro do estrangeiro. Alguns poucos leitores, afeitos a teorias conspiratórias, entenderam errado o texto, o que é culpa minha.