Declaro-me parte do primeiro grupo. No segundo, há várias correntes. Uma delas, rudimentar, demanda redução voluntarista de juros e aumento dos gastos públicos, provavelmente supondo que assim ensinava Keynes. Outra, sofisticada, entende que o abre-te-sésamo é "juros-baixos-e-câmbio-alto". Uma terceira fala em inflexão da política econômica, uma forma sutil de recomendar mudança (veja o Aurélio).
A turma da inflexão afirma que não quer ações irresponsáveis. Deseja "apenas" uma "correção de rumos" (que também quer dizer "mudança"), mas sem perder de vista a responsabilidade fiscal, a estabilidade monetária e a previsibilidade na condução da política econômica. É um grande avanço frente ao que pregava.
O segundo grupo acha que um ministro da Fazenda competente pode mexer sem problema na dupla juros-câmbio. Basta ter perícia. O terceiro grupo julga que o ministro necessita apenas ser cercado de condições políticas para promover a inflexão. Nenhuma dessas e outras propostas – como a da moratória da dívida externa, pregada por segmentos do PT e pelo MST – assusta os investidores. A percepção tem sido a de que Lula não vai "brincar com a economia", com ele tem dito. Imagina-se que a política econômica está blindada contra essas investidas.
Incluo-me entre os que crêem na blindagem. Não tanto pela atual liquidez internacional (que aumenta o apetite dos investidores para assumir riscos) nem pelos fundamentos da economia (que diminuíram a vulnerabilidade a choques externos). A blindagem deriva dos avanços institucionais dos últimos vinte anos, que aumentaram a transparência e a previsibilidade das políticas fiscal e monetária.
Explicando melhor. As instituições permitem que ações capazes de gerar perdas para quem investe sejam instantaneamente detectadas. Tal qual a dor no corpo humano, as instituições emitem sinais de alerta sobre ameaças, que levam os investidores a se precaver. Se perceberem qualquer irresponsabilidade, fogem com seus capitais e provocam turbulências nos mercados. Mais tarde, surge a inflação e declina a atividade econômica. O eleitor médio se sente inseguro. O Presidente perde rapidamente popularidade.
O Brasil já construiu instituições econômicas semelhantes às dos países ricos. A transparência e a previsibilidade do Banco Central não deixam a dever às de seus congêneres nesses países. O mesmo ocorre na área fiscal, particularmente depois da Lei de Responsabilidade Fiscal. Há, infelizmente, uma diferença crucial. Naqueles países, essas instituições estão consagradas no ordenamento jurídico há décadas.
Aqui, a autonomia do BC é uma dádiva do presidente da República, que pode ser retirada ao seu talante. A blindagem depende da avaliação de seus benefícios e dos riscos de mudar. Com FHC e Lula, o BC passou a ter autonomia para fixar a taxa de juros. Entenderam que essa tarefa deve ser conduzida tecnicamente e não por motivação política, ainda que em prol do crescimento. O BC deve ser um órgão do Estado e não do governo.
A blindagem pode, todavia, cair. Não há lei que impeça Lula de orientar a Fazenda a comandar a mudança defendida pelos alternativos. Correrá riscos, mas tem poder para tanto. Um dos riscos é a renúncia coletiva no BC. Outro é o efeito da eliminação da autonomia do BC. Os mercados perceberiam a "ousadia" e o fim da previsibilidade. Resultado: crise de confiança, que poderá ser passageira, se Lula tiver sorte. Se rejeitar essas propostas, Lula assegurará um quadro econômico muito favorável em 2006, a não ser que ocorra uma crise mundial. Se aceitá-las, não sabe o que vai acontecer. Se os alternativos estiverem certos, os mercados se acalmarão rapidamente e a economia crescerá mais. Se não, como creio, a empreitada dará com os burros n'água.
Suspeito que Lula, prestes a enfrentar uma eleição, não vai arriscar, pois sabe que não se pode "brincar" nessa área para contentar certos grupos.
O país mudou, mas muita gente ainda insiste em pensar que o Presidente e o ministro da Fazenda podem agir como no Brasil antigo. Correção: domingo passado, citei o presidente Bush (pai), em vez do presidente Clinton, como líder da proposta de criação da Alca. Perdoem-me.