1Míriam Leitão - Agora é Lula Ilimar Franco - Interino O Globo 31/10/2005
O PSDB, que lidera a oposição, vai manter sua escaramuça com o PT, mas sua prioridade agora é concentrar os ataques no presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os tucanos, que chegaram a apostar no impeachment, decidiram voltar à carga por causa das mais recentes pesquisas. Elas mostram que a avaliação do governo parou de cair e que Lula lidera as pesquisas de intenções de voto.
A oposição vai canalizar na CPI dos Bingos, onde tem maioria de nove votos contra seis, as principais ações de ataque ao presidente Lula. A oposição está determinada a constranger o presidente da República e vai convocar para depor, provavelmente no ano que vem, o da eleição, o filho do presidente Lula, Fábio Luiz, para explicar o negócio feito entre a Gamecorp e a Telemar, e seu irmão, Genival Inácio da Silva, o Vavá, para falar sobre suas atividades como lobista. De imediato, a oposição vai convocar Rogério Buratti e Vladimir Poleto para falar sobre o "ouro de Cuba" e convidar para depor o diplomata cubano Sérgio Cervantes, que foi transferido do Brasil no primeiro semestre de 2003.
— O PT está liquidado. O PT só sobrevive se o presidente Lula se mantiver vivo — resume o vice-líder do PSDB, Eduardo Paes (RJ).
Na rodada de inserções que o PSDB terá na televisão e no rádio, a partir de quinta-feira, os tucanos atacarão diretamente o presidente Lula. Vão estabelecer um confronto entre suas promessas de campanha e suas realizações no governo. Mas vão acima de tudo explorar o escândalo de corrupção nos Correios, no IRB, nas estatais e o pagamento do mensalão para deputados aliados. As pesquisas qualitativas, feitas pelos tucanos, dizem que é neste ponto que reside a decepção dos eleitores com o governo Lula. Os tucanos vão explorar à exaustão a declaração do presidente de que ele não sabia de nada. Os governistas também consideram que essa declaração, feita para conter a escalada pelo impeachment, deixou o presidente Lula bastante vulnerável, pois passou à sociedade a imagem de inepto.
O clima é de confronto, pois a linha do combate também foi adotada pelo novo presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP). E dirigentes dos dois partidos concordam que, à medida que as eleições presidenciais se aproximarem, a tendência é que aumente a agressividade dos dois lados. Essa belicosidade será um problema a mais para ser administrado por aquele que vencer as eleições presidenciais de 2006.Frase do deputado Cezar Schirmer (PMDB-RS) no julgamento de José Dirceu: "Nós não o estamos punindo por corrupção, mas por ter fraudado os sonhos de mudanças".
Vem aí o voto fora do domicílio eleitoral
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto que vai permitir que eleitores fora de seu domicílio eleitoral votem nas eleições presidenciais. No primeiro turno da eleição para presidente, em 2002, 6,7 milhões de eleitores, cerca de 7% do total, deixaram de votar, indo às agências dos Correios e às mesas eleitorais especiais para justificar o não-comparecimento às urnas.
— Se a urna é eletrônica, por que o voto não pode ser eletrônico? O eleitor vota de qualquer lugar e o voto cai na sua urna — diz o autor do projeto, senador Valdir Raupp (PMDB-RO).
O projeto relatado pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) prevê que na primeira eleição, após aprovado o projeto, os eleitores em trânsito votariam na disputa para presidente. No pleito seguinte, os eleitores votariam também para governador, senador, deputado federal e estadual.
Os eleitores já votaram fora de seu domicílio eleitoral. Isso ocorreu em 1993 no plebiscito sobre sistema de governo. Os TREs organizaram urnas especiais para os eleitores em trânsito.
Acordo
O PDT fez um acordo interno para o caso de o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) não se viabilizar como candidato a presidente. O partido não apoiará formalmente qualquer candidato a presidente, o que lhe dará maior flexibilidade para fazer alianças nos estados. O acerto atende aos governadores Valdez Goez (AP) e Ronaldo Lessa (AL). Os trabalhistas vão se dividir entre a reeleição de Lula e o candidato da oposição.
Liberados
As cúpulas do PTB, do PL e do PP, depois de consulta junto a dirigentes regionais, estão decididas a não coligar nas eleições presidenciais. Essa mesma visão passou a ser defendida por setores do PFL que, neste momento, são minoritários. Esses pefelistas dizem que o constrangimento que o partido terá para articular alianças nos estados não vale uma candidatura a vice-presidente na chapa do tucano José Serra.
AO CONTRÁRIO do que ocorreu na CPI dos Bingos, quando o governo trabalhou para que ela não fosse instalada, dando à oposição maioria, na CPI do Caixa Dois o governo vai trabalhar para ter maioria.
O PRESIDENTE do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e o governador de Alagoas, Ronaldo Lessa (PDT), estão em guerra contra o ministro Palocci. O Tesouro decidiu reter R$ 47 milhões da cota do Fundo de Participação dos estados que iriam para Alagoas. Esse valor representa três vezes a despesa de custeio do estado.
OS PETISTAS que serão julgados pelo Conselho de Ética estão arrependidos de não terem renunciado. O placar de 13 votos a 1 contra José Dirceu lhes tirou qualquer esperança de serem inocentados.
E-mail para esta coluna: ilimar@bsb.oglobo.com.br
Luís Nassif - O brasileiro do século Folha de S. Paulo 31/10/2005
Não consta que Marcos Valério tenha ido buscar na história o know-how do seu "valerioduto". Mas, ao afirmar na CPI do Mensalão que "desde Rui Barbosa" já havia práticas análogas, talvez sem querer tocou em um nervo exposto da historiografia nacional: Rui Barbosa, o "Águia de Haia".
Provavelmente em toda a história do país não exista personagem com tantos defeitos gigantescos e tantas qualidades enormes, que tenha sido tão poupado pela intelectualidade nacional. Recentemente, uma revista elegeu-o "o brasileiro do século". Os liberais o endeusaram por sua campanha "civilista" contra Hermes da Fonseca. Os juristas, por sua visão de direitos individuais. Os "desenvolvimentistas" -como Celso Furtado- tinham uma visão extremamente benevolente do "encilhamento", o portentoso processo especulativo que quase liquidou com a República e matou o desenvolvimento brasileiro por décadas.
O que encantava Furtado era o fato de Rui ter enfrentado a ortodoxia da época, que se pelava de medo de emissões desordenadas de moeda, podendo influenciar o câmbio. Rui decidiu autorizar a emissão de moedas na quantidade que atendesse às necessidades da economia nacional. O câmbio seria decorrência desse objetivo maior. Com base nessa crença -cujos seguidores eram denominados de "papelistas"-, autorizou bancos privados a emitirem moeda com lastro em títulos públicos -não mais em ouro, como defendiam os "metalistas". Segundo seus defensores, o desastre do "encilhamento" foi devido à falta de um banco central, na época, que controlasse os movimentos especulativos do câmbio.
Em 1965, saiu o primeiro livro iconoclasta, revisando a sua biografia -"Rui Barbosa: o Homem e o Mito", de Raymundo Magalhães Jr. A edição está esgotada. Pode-se lê-lo na biblioteca Mário de Andrade. Nos últimos anos, a conduta pessoal de Rui passou a ser mais bem avaliada em trabalhos acadêmicos, na identificação das causas do desastre.
A idéia de permitir a emissão privada lastreada em títulos públicos foi de Visconde de Ouro Preto, último ministro da Fazenda do Império. Havia um beneficiário claro, Conselheiro Saraiva, dono do Banco Nacional; e um crítico exacerbado: o jornalista Rui Barbosa.
Cai o regime, novo governo e o grande crítico de Ouro Preto, Rui Barbosa, é nomeado ministro da Fazenda. Onze dias depois da Proclamação, começou a distribuir concessões a torto e a direito e a preparar um novo quase monopólio de emissão, a ser entregue ao Conselheiro Mayrink -adversário de Saraiva-, em um episódio que quase levou à demissão todo o ministério Deodoro, tal seu teor de escândalo.
Com os benefícios recebidos, Mayrink faz inúmeros lançamentos de ações no mercado de empresas porcamente capitalizadas, criadas com o único intuito de dar golpe na praça. Rui autorizou emissões sucessivas adicionais de moeda, quase todas canalizadas para o movimento especulativo de Mayrink. Ou seja, a expansão monetária -que os economistas enxergam apenas por meio da análise dos grandes agregados financeiros- de perto era adrenalina na veia de Mayrink, alimentando a especulação.
Rui deixou o país em ruínas, fez negociatas com a banca inglesa, permitiu que os Estados pudessem tomar empréstimos externos com garantia da União. Deixou o governo com o país na maior crise da sua história e assumiu, de imediato, cargos em três companhias criadas por Mayrink em pleno "encilhamento".
Anos depois, foi indicado pelo Barão de Mauá para representar o país em uma conferência internacional. Nela, o chanceler da Argentina defendeu a tese de que países credores não poderiam invadir países devedores para cobrança da dívida. A América do Sul e os emergentes em geral ficam a favor da tese. O civilista Rui Barbosa foi voto contrário.
Rui morreu em 1º de março de 1923, como herói nacional. Um estudante recitou em praça pública em Salvador: "Morrerás? Não! Tua glória se não finda/ Oh! grande! Oh! nobre herói da liberdade!/E mesmo morto viverás ainda!".
Vive até na memória remota de Valério e nas lembranças que as CPIs permitem evocar.
Fernando Rodrigues - Finalmente, a origem Folha de S. Paulo 31/10/2005
Demorou, mas finalmente a CPI dos Correios, a mais operante de todas, vai chegar próxima do que mais importa na investigação do "mensalão": a origem externa do dinheiro que abasteceu as contas de políticos brasileiros.
Quatro integrantes da CPI dos Correios embarcam amanhã à noite para os Estados Unidos. Vão tentar obter autorização legal para ter acesso aos dados financeiros de uma conta do publicitário Duda Mendonça.
A confissão de Duda sobre os cerca de R$ 10,5 milhões ocorreu há mais de dois meses, em 11 de agosto. O dinheiro foi depositado no exterior. Não se sabe até hoje, em detalhes, de onde saíram os recursos.
Obter os números das contas bancárias que abasteceram Duda Mendonça lá fora é apenas o primeiro passo da investigação. Em seguida, será necessário também requerer as quebras dos sigilos desses fornecedores. Aí está o grande temor de políticos em geral, do PT ao PSDB, do PMDB ao PFL.
Um senador da República foi procurado por um enviado do submundo. "Cuidado. Você pode acabar ficando sem partido", foi o recado. Na ponta final das contas que abasteceram Duda Mendonça no exterior certamente aparecerá a evidência de que determinados partidos mantinham dinheiro fora do país.
Uma vez comprovado esse tipo de operação ilegal, a sigla envolvida pode ter seu registro cassado -e todos os seus filiados ficam impossibilitados de concorrer a qualquer cargo no ano que vem. Se o PT for um desses partidos, Lula não poderá entrar na disputa pela reeleição.
É evidentemente mínima a chance de algo dessa natureza acontecer. Até porque o PT não seria o único a evaporar do cenário nacional. A tentação por um acordão, uma pizza, é enorme. Nunca a CPI dos Correios esteve tão perto de conseguir algo tão relevante. Mas nunca as pressões no sentido oposto foram tão intensas.
Brasil - É preciso concluir o Plano Real Claudia Safatle Valor Econômico 28/10/2005
Alguém terá que assumir a tarefa de concluir o Plano Real. Bem-sucedido programa de estabilização, o Real só terá encerrado sua missão quando tiver colocado a economia na rota de crescimento vigoroso e sustentado, com taxas de juros reais civilizadas, e o país sendo considerado "investment grade". Uma classificação que várias empresas brasileiras já estão obtendo, a despeito do ainda considerado elevado risco soberano. Enquanto a dívida líquida do setor público estiver na casa dos 50% do PIB, o país não chegará ao paraíso.
A taxa média de crescimento do PIB de 1994 a 2005 (supondo 3,5%) é lastimável, 2,8% ao ano. A diferença de crescimento entre o período dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, de 2,7% médio ao ano, para os três anos do governo Lula, com média de 3%, não chega a ser algo que faça uma enorme diferença.
A discussão em torno de um novo programa fiscal, com metas de longo prazo, centrado no controle das despesas, nesse contexto, é absolutamente relevante e não deve ser descartada por incompreensão, de alguns membros do governo, da precária situação financeira do Estado ou por interesses eleitorais. Uma política fiscal crível para os próximos dez anos pode ser um caminho para libertar a economia brasileira das amarras do baixo crescimento e recuperar a capacidade de o Estado fazer investimentos.
Das medidas que o governo admitiu estar estudando para compor um "emendão constitucional", duas são indiscutíveis: prorrogação da CPMF e da Desvinculação das Receitas da União (DRU). Criada para ter função provisória de arrecadação, a CPMF extingue-se em dezembro de 2007, pela legislação atual, assim como a DRU. Mesmo que sejam instrumentos desajeitados para produzir receitas, ninguém hoje advoga o fim abrupto de ambos.
A proposta que Fabio Giambiagi, do Ipea, fez e que o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, assumiu, é, portanto, meritória. Sugere a prorrogação, por tempo indeterminado, da CPMF, com alíquotas decrescentes, saindo dos atuais 0,38% para 0,08% num prazo de dez anos; e prorrogação da DRU, mas com alíquotas crescentes, aumentando a desvinculação das receitas dos atuais 20% da receita total para até 35% em seis anos. Isso significaria redução da tributação, de um lado, e aumento dos recursos de uso discricionário da União, de outro.
Programa pode ser Carta aos Brasileiros de 2006
Outras providências consideradas na emenda são a fixação de um teto para as despesas, em 17,5% do PIB, limite cadente ao longo do tempo; e um novo teto para os gastos com pessoal para os três poderes. A primeira, é uma mera decorrência do fato que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fixou teto para as receitas, e o governo estabeleceu meta de superávit primário. Ou seja, o teto para a despesa é um subproduto e é defendido pelo presidente Lula como iniciativa de bom senso. E não há como contestar que o setor público precisa de um freio nos gastos com pessoal, que consumirão, em 2006, R$ 109 bilhões e estão em descompasso com os salários do setor privado, que caíram 11% entre 1996 e 2003.
O que está em jogo não é mero aumento do esforço fiscal para pagar juros, mas uma política que, sendo crível, permita a redução mais rápida e substancial da taxa de juros, a criação de uma curva de juros correta, a diminuição dos papéis "selicados" (títulos indexados à Selic) e a redução da dívida/PIB dos atuais 51,6% para a casa dos 40% num prazo o mais rápido possível.
Projeções do Tesouro, elaboradas com base nas estimativas do Focus do Banco Central, apontam para a possibilidade de a dívida cair para 40% do PIB em 2010, se a economia crescer a 4% ao ano e a Selic real for de 7,3% ao ano. Goste-se ou não, e a despeito das críticas que se faz à falta de sensibilidade das agências de rating, que são reativas, o fato é que o país ainda é visto com reservas por causa do tamanho, da composição e dos prazos da dívida. São mais do que justas as preocupações sociais do governo, as demandas por investimentos e o desejo de distribuir renda com aumento real do salário mínimo de 2006. Expandir despesas agora é inoportuno.
O Plano Real está saindo caro demais se medido pelas modestas taxas de crescimento, é urgente concluí-lo pela sua face fiscal, e nesta, com o foco no controle da despesa pública.
O momento político para colocar essas questões é, sem dúvida, péssimo. A crise que se arrasta praticamente fechou os espaços de mobilidade do governo no Congresso. É verdade, porém, que qualquer que seja o vencedor das eleições de 2006, se tiver esse - ou algum outro na mesma direção - elenco de medidas aprovadas, poderá iniciar o mandato com agenda renovada, não tendo que gastar o primeiro ano para discutir a CPMF e a DRU, por exemplo. Seria interessante que o presidente Lula submetesse ao Congresso um programa fiscal de longo prazo, que retire as ainda existentes incertezas quanto aos compromissos fiscais dos próximos exercícios, e que sirva como a Carta aos Brasileiros da eleição de 2006.
Claudia Safatle é diretora de Redação adjunta e escreve às sextas-feiras
VINICIUS TORRES FREIRE
Direita, sem medo de ser feliz SÃO PAULO - O florescimento ideológico da direita é a conseqüência mais imediata e evidente do desastre do petismo-lulismo além da desmoralização quase final da política.
Direita sempre tivemos, claro, mas todas as flores florescem no campo dos ideólogos e do articulismo de direita -é uma revolução cultural, para recorrer a duas expressões da China maoísta. Estão por jornais, revistas, sites. Gente de proa e popa do PFL e outros adeptos da ditadura e de Collor tornam-se respeitáveis, por comparação a figuras abjetas do petismo-lulismo, seu dinheiro sob as calças, seu "ouro de Moscou" cubano.
No Brasil moderno, pós-Getulio Vargas, a direita sempre fora um fracasso de estima, bem sucedida politicamente quando armada, "em si" sempre derrotada nas urnas e que se furtava a encarar o debate político e cultural de cara limpa e lavada. Depois da ditadura militar, parecia quase uma questão de boas maneiras não ser de direita e era moda o alternativismo comportamental e ideológico esquerdóide e desmiolado.
No mais das vezes a direita parecia ou era uma excrescência intelectual e cultural, dados a debilidade intrínseca de suas idéias e o trator da hegemonia cultural e psicológica do esquerdismo, do "nacional e popular". Uma de suas figuras mais brilhantes foi um golpista e um intelectual fracassado, Carlos Lacerda. Um de seus representantes historicamente mais decisivos, Roberto Campos, colaborou com o "nacional-desenvolvimentismo". A direita brasileira era, de resto, uma caricatura.
Na liberalização collorida-fernandina o clima mudava, mas os tucanos ainda eram por demais politicamente corretos, demais banhados no Brasil anos 50 a 70 para se assumirem como direita dura e crua.
A direita agora se enraíza -na imprensa, nos costumes, nas idéias históricas e novas do direitismo. Cômico, porém, é que seus ideólogos mais estridentes combatam o petismo-lulismo, que seqüestrou e matou o lugar da esquerda; o PT, uma caricatura que a pior direita fazia da esquerda, o PT, um meio de ascensão social do sindicalismo. A polêmica é espuma; idéias e decisões cruciais sobre o país estão em outro palco.
A mesma lengalenga sobre cumulatividade
MARCOS CINTRA
O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, propõe uma nova política fiscal. Entre outras providências, sugere um teto de 17,5% do PIB para os gastos correntes e sua redução em 0,1 ponto percentual ao ano a partir de 2008, a ampliação da DRU de 20% para 35% até 2013 e a prorrogação da CPMF até 2009, com sua alíquota sendo reduzida gradualmente até 2013.
A proposta estabelece metas e ações importantes. No entanto há um equívoco, que poderá ser trágico, na questão da CPMF.
O governo quer reduzir a carga tributária começando pela CPMF. A intenção seria prorrogar sua vigência com a alíquota de 0,38% até 2009 e reduzi-la de forma gradual até 0,08% em 2013, quando então o tributo se tornaria permanente e mantido apenas como um instrumento de fiscalização.
A primeira questão a ser discutida reside na coerência e na sinceridade, ou falta delas, da proposta. Se a CPMF é um tributo pernicioso para a economia brasileira, tese da qual discordo frontalmente, por que não eliminá-lo imediatamente e compensar a perda de arrecadação com o aumento de tributos considerados saudáveis pelo ministro, como o IPI, o IR ou então a Cofins, que são não-cumulativos e, na sua opinião, menos perversos que a CPMF?
Segundo: se a verdadeira meta do governo fosse a redução da carga tributária, a decisão deveria ser aplaudida. No entanto, a utilização da CPMF para atingir esse objetivo é totalmente equivocada.
A experiência da CPMF desde meados dos anos 90 evidenciou suas vantagens. É um tributo universal, com ampla base de incidência; equânime, com sua proporcionalidade relativa à movimentação financeira do contribuinte; com alta produtividade; baixa alíquota; custo reduzido para o contribuinte e para o governo; praticamente impossível de ser sonegado; e radicalmente simples, com a dispensa de preenchimento de obscuros formulários, típico dos impostos declaratórios, bem como das temidas fiscalizações, em geral recheadas de objetivos escusos.
Aliás, essas qualidades foram reconhecidas por Everardo Maciel, quando era secretário da Receita Federal. Segundo ele, a CPMF "é um ótimo imposto; tem custo praticamente zero, não afetou preços ou provocou desintermediação financeira; tudo se exprime em fluxo; não passa nada; há muito o que aprender com a CPMF".
Ao que tudo indica, a proposta de antecipar o debate em torno da CPMF é meramente uma estratégia preparatória para prorrogar o tributo além de 2007. O próprio Bernardo disse, em seminário na Apimec (Associação de Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado), que "o governo não poderá abrir mão da CPMF, que é fonte segura de arrecadação".
Em estudo do Ipea encomendado pelo ministro, a CPMF é rotulada, equivocadamente, como entrave à competitividade nacional por ser um tributo "em cascata". É a velha tese que sataniza os impostos cumulativos e endeusa os que incidem sobre o valor agregado.
Produzi inúmeros textos mostrando que a alegação de que a CPMF é ruim porque é cumulativa é um puritanismo hipócrita, porquanto não existe imposto perfeitamente não-cumulativo, um ideal teórico e jamais encontrado na vida real. Ademais, por ser a CPMF um tributo insonegável, não causa as imensas distorções de preços relativos e, portanto, alocativas, que a sonegação, estimulada pelos tributos convencionais, introduz na matriz interindustrial brasileira. Essa, sim, é uma perversidade, uma aberração, que seria amplamente evitada com o uso de tributos eletrônicos como a CPMF. Em várias simulações publicadas, mostrei que um imposto cumulativo sobre as movimentações financeiras, com baixa alíquota, provoca menos distorções sobre os preços relativos do que um IVA sonegável com alíquota elevada.
Quanto às exportações, encarece-as o emaranhado de impostos e contribuições existentes. Apesar de muitos incidirem sobre o valor adicionado por etapa da produção, somente parte deles é desonerada. A guerra entre governadores e a União sobre as compensações da Lei Kandir está levando muitos Estados a não mais conceder isenções aos exportadores, sem falar na virtual impossibilidade de receberem os créditos a que têm direito. A desoneração das exportações está se revelando não-operacional com tributos sobre valor agregado administrados por entidades subnacionais. Com a CPMF, a desoneração seria simples e objetiva, mediante rebates calculados por meio das matrizes de insumo-produto elaboradas pelo IBGE.
É notório que a CPMF é um tributo que atende às necessidades brasileiras e que incorpora a onda simplificadora que domina as mudanças tributárias debatidas nos EUA e implementadas em países da Europa. A CPMF pode, e deve, ser utilizada para reduzir nossa carga tributária global e individual por meio de sua utilização para substituir impostos amplamente sonegados e de alto custo. Seria um grande estímulo para o crescimento econômico.
HELENA CHAGAS
E depois, hein?
Apertem os cintos, senhores passageiros, porque a turbulência vai continuar. A crise virou rotina e tornou-se crônica. Do jeito que a coisa vai, nem mesmo o acerto de contas de outubro de 2006 entre as duas principais forças políticas deve zerar o jogo. Sem maioria parlamentar e com uma oposição truculenta nos calcanhares, o eleito, seja quem for, terá enormes dificuldades para governar.
Não adianta: o sistema político entrou em colapso. E assim será enquanto não se conseguir mudar a lógica que contrapõe um presidente forte, saído das urnas com milhões de votos mas sem maioria parlamentar, a um Congresso eleito na base de práticas clientelistas sem compromissos partidários ou programáticos.
Ninguém governa hoje se não "comprar" sua maioria — e a expressão engloba desde a legítima troca de apoio parlamentar por espaços no governo a métodos mais escusos, que o PT aprendeu rapidamente.
Em 11 meses, teremos uma eleição difícil e radicalizada. Lula continua um candidato forte. Os escândalos envolvendo o caixa dois atingiram a oposição e não se comprovou até hoje que o valerioduto terá sido alimentado pela corrupção pública. As perspectivas na economia são razoáveis e o andar de cima, se anda decepcionado com a ética e as ações de governo, está tranqüilo quanto à estabilidade econômica.
O Bolsa Família rende dividendos: pesquisa Datafolha mostra pela primeira vez que a popularidade do presidente junto aos beneficiários dos programas sociais é bem superior à média geral (o índice de bom e ótimo sobe de 28% para 34%). Não se sabe se esse tipo de movimento vai crescer e se espalhar por outros estratos da população, numa espécie de "movimento pedra no lago" ao contrário. Mas dá ao presidente a possibilidade de sonhar.
Digamos então que Lula seja reeleito. Sua coligação PT-PSB-PCdoB, ainda que com o apoio de setores do PMDB, não terá, certamente, a maioria do Congresso. Se já não a teve no primeiro mandato, quando saía forte das urnas e o PT tinha a maior bancada, imagine-se agora. Terá que buscá-la para governar. Onde? Na oposição é que não será. Dispensável citar parceiros e métodos a serem usados. Não há para onde correr. Já vimos esse filme e quem morre no final somos nós.
Vamos então pensar em outro cenário, que poderia, quem sabe, produzir um filme diferente: a vitória de um candidato de oposição. Digamos que seja José Serra ou outro tucano, em aliança com o PFL. Ainda que a coligação eleja uma bancada maior do que a do petista, o sistema de voto proporcional uninominal, a ausência da fidelidade e a fragilidade partidária não permitirão também que o novo presidente seja eleito com maioria parlamentar. Também terá que recorrer aos penduricalhos de sempre, com os métodos de sempre. De outros, não é preciso nem falar: qual seria a sustentação parlamentar do presidente Garotinho, por exemplo?
Agregue-se a isso um clima de acirramento que tende a tornar a oposição pós-2006, qualquer que seja, um osso duro de roer e o futuro não é nada promissor.
A esta altura, parece que a solução não é mais aquela reforma política que, do jeito que vem sendo negociada, virou moeda de troca para interesses menores. O pacto de salvação possível passaria por uma assembléia constituinte revisora e exclusiva para passar a limpo o presidencialismo à brasileira. Mas quem disse que eles querem mudar?
Do caixa dois ao ouro de Cuba
Bem que o líder Aloizio Mercadante tentou. Procurou três caciques da oposição — Tasso Jereissati (PSDB), Agripino Maia (PFL) e Arthur Virgílio (PSDB) — para propor uma trégua. Foi bem recebido. Coincidência ou não, horas depois aprovou-se a MP 255, que deu os benefícios tributários da MP do Bem. Mas o clima durou pouco.
Naquele momento, a bola da vez era a oposição, fragilizada com a confirmação da ligação de Eduardo Azeredo com o esquema Marcos Valério. O PT retomou a pancadaria. E tome a pedir a cassação do tucano.
Agora, com a denúncia sobre o ouro de Cuba, a semana começa com governo e petistas na berlinda. A oposição volta a falar em impeachment.
Nem uma coisa nem outra deve acontecer. Não há sequer tempo para um processo desses contra Lula antes da eleição. E a cassação de senadores é no Senado, que costuma ser solidário aos seus e não parece sensibilizado com mais esse caso de caixa dois — mesma alegação, aliás, dos que querem processar Lula. É tudo discurso. Lamentavelmente, porém, a palavra trégua vai ficar de fora.
Editorial do Estadão
Proteção danosa
Parece notícia velha, mas não é. A Argentina quer prorrogar o acordo automotivo com o Brasil. E, pela postura do governo brasileiro, é muito provável que mais uma vez consiga impor seu ponto de vista nas questões centrais, aceitando fazer concessões em temas secundários, de modo que os dois lados possam afirmar que saíram ganhando alguma coisa.
Negociado em 1999 e em vigor desde o início de 2000, o acordo sobre o comércio de automóveis e componentes entre os dois países deveria vigorar por seis anos, isto é, até 31 de dezembro de 2005, período considerado suficiente para que o lado que se sentia mais prejudicado pelo livre comércio desses produtos, a indústria argentina, promovesse as mudanças de que carecia para enfrentar a abertura do mercado no Mercosul. Argumentação semelhante fora utilizada para justificar o acordo anterior, que vigorou até 1999.
Ao que se informa, a indústria automobilística argentina, com o apoio do governo de seu país, quer prorrogar o acordo por pelo menos dois anos. Seu argumento, mais uma vez, é o de que precisa de tempo para se adaptar e eliminar as "assimetrias" - esta é a expressão preferida, no momento, por empresários e governantes argentinos para justificar as restrições ao ingresso de produtos brasileiros no país - em relação a sua congênere instalada no Brasil. Em todo o período em que gozou de proteção - iniciado em 1995, quando os países do Mercosul decidiram adotar o livre fluxo de mercadorias entre eles e aplicar uma Tarifa Externa Comum (TEC) a produtos de terceiros países -, a indústria automobilística argentina não avançou o suficiente para enfrentar o livre comércio dentro do bloco. Não é fácil acreditar que o faça nos próximos dois anos.
Dos veículos vendidos na Argentina, mais de 60% são de procedência brasileira. Já os veículos argentinos ocupam uma fatia de apenas 2,8% do mercado brasileiro. Para a indústria argentina, isso mostra que o acordo, apesar das restrições que impôs ao ingresso do produto brasileiro, está sendo insuficiente. Foi com base num argumento semelhante a esse que a Argentina conseguiu, em 2002, renegociar certos itens do acordo concluído dois anos antes, para introduzir a regra segundo a qual para cada US$ 1,00 importado da Argentina, o Brasil poderia exportar US$ 2,60. Essa regra ficou conhecida como "flex".
As negociações começarão nos próximos dias, em Buenos Aires. É provável que uma das propostas argentinas seja a mudança da relação entre importações e exportações do Brasil, para restringir ainda mais o ingresso de veículos brasileiros no mercado argentino.
Desde que tomou posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem fazendo concessões a parceiros comerciais da região, em busca da consolidação de uma liderança que está cada vez mais distante. Os parceiros têm-se aproveitado dessa pretensão de Lula e conseguido arrancar boas vantagens nas negociações diplomáticas e comerciais. Não é difícil que o governo argentino, que já impôs a assinatura de outros acordos automotivos e sua revisão sempre que isso lhe foi conveniente, consiga mais uma vitória para si e para a já excessivamente protegida indústria local.
O que com certeza se poderá dizer, se isso novamente acontecer, é que não será uma vitória para os argentinos que consomem, nem para o Brasil que produz ou para o Mercosul. As brigas comerciais entre os dois países, em geral provocadas pelo governo argentino, tendem a inibir os investimentos no bloco.
Em condições normais, o Mercosul já teria dificuldades para atrair investimentos maciços no setor automobilístico, pois as grandes montadoras estão mais interessadas na Ásia, em particular na China. Há seis anos, a China respondia por 3% da produção automobilística mundial; no ano passado, a fatia chinesa já tinha crescido para 7,9%. E continua a crescer. Está diminuindo, em contrapartida, a participação do Mercosul na produção global de veículos: de 4,7%, em 1997, caiu para 3,9% em 2004.
No curto prazo, a indústria argentina pode ter algum ganho com a prorrogação do acordo. Mas no médio prazo perdem todos. Quanto mais tempo demorar a verdadeira integração comercial do Mercosul, mais espaço a indústria regional perderá no mercado global.
Triunfo liberal (1)
Carlos Alberto Sardenberg*
Terá sido uma vitória liberal o esmagador "não" no referendo sobre a proibição do comércio de armas? Há como argumentar que sim, que venceu a idéia segundo a qual a liberdade individual é o valor principal a ser protegido pela lei. No caso, a liberdade de comprar uma arma para defesa pessoal. Preferiu-se isso a transferir para o Estado a responsabilidade integral de defender todos, igualmente.
Esse debate se dá no terreno das escolhas entre liberdade individual e igualdade social, com sua variação principal, liberalismo versus socialismo (ou social-democracia). Essa questão está presente em todos os debates sobre políticas públicas.
Num regime liberal puro, não poderia haver previdência pública e obrigatória. Entender-se-ia que cada pessoa, sendo livre e responsável, saberia cuidar de sua vida, construir a sua poupança e, pois, a sua aposentadoria.
O argumento contrário diz que a aposentadoria é um direito social, universal e deve ser garantido pelo Estado, já que os mais pobres não teriam como alcançá-lo. Assim, o governo toma uma parte dos rendimentos de cada trabalhador e a redistribui aos retirados. A idéia é fazer justiça social – recolhendo contribuições maiores dos mais ricos, mas reduzindo as diferenças na hora de pagar as pensões, estabelecendo-se, por exemplo, um teto. Eis aí o Estado de Bem-Estar Social construído pelos europeus.
Nessa mesma balada, a questão da segurança. Liberalismo: o cidadão compra sua arma e com ela defende sua propriedade, sua família, sua liberdade, como diziam os revolucionários norte-americanos na luta contra os ingleses. Social-democracia: o Estado deve cuidar da segurança de todos, inclusive para dar mais proteção aos pobres.
No limite do liberalismo, o Estado quase desaparece. No limite do socialismo, desaparece o indivíduo, que só pode fazer o que o Estado permite.
Na História dos povos, a coisa é meio mussarela, meio aliche. E, por aqui, freqüentemente avacalhada. Tome-se a Previdência brasileira. É na linha social-democrata, mas termina concedendo pensões milionárias, que repetem, e às vezes pioram, a desigualdade de renda dos trabalhadores. Tome-se ainda o sistema educacional público, gratuito e, portanto, supostamente igualitário – mas que acaba levando os mais ricos às melhores universidades do governo.
Trata-se de um tipo de Estado de Bem-Estar Social só para quem pode. Por diversos meios, incluindo eleições, diversas elites assaltam o Estado e distribuem os benefícios à clientela especial. A questão política, portanto, se resolve nisso: quem vai conquistar o governo para atender à sua turma.
No caso brasileiro, como de muitos outros países, é preciso misturar a essa salada a cultura que leva as pessoas a buscarem no Estado a solução para seu caso. Funciona claramente na questão da segurança. A alternativa à brasileira nunca foi a liberal. Pouquíssimas pessoas tiveram a idéia de comprar uma arma para garantir sua segurança, mesmo sendo ricas. O que as pessoas sempre quiseram era uma guarita da PM na porta de sua casa.
Eis o xis do referendo. Num país menor, menos urbano, mais simples na sua divisão social, os mais ricos e as elites não tiveram problema em manter o Estado a seu serviço. Há 40 anos, o ensino público, primário, secundário e superior, era de excelente qualidade. Mas havia vagas para poucos, suficientes apenas para a parte de cima da sociedade e para os que dominavam o poder político. E as guaritas protegiam os bairros bons.
No Brasil de hoje isso se tornou impossível. O País cresceu, trouxe milhões de pessoas para a economia urbana, introduziu uma democracia de massas. Resultado: não cabe mais toda essa gente no Estado.
Verdade que se tentou. A distribuição de benefícios previdenciários para milhões de trabalhadores, que não contribuíram ou não contribuíram o suficiente, foi ou não um modo de, em nome da justiça social, incluir mais gente no Estado?
As cidades cresceram, os bairros se espalharam e, assim, foi preciso dividir a polícia com mais clientes. Há mais polícia hoje, mas ainda assim não dá. Idem para as escolas públicas: puseram-se todas as crianças na escola, mas o ensino é ruim.
O resultado é que hoje pagamos mais impostos e temos serviços piores. Como sair dessa? É nesse ambiente que se deu o referendo sobre o comércio de armas. Só que isso não ficou claro na campanha.
O pessoal do "sim" – pela proibição do comércio de armas – não tinha chance. Pediu que os cidadãos e a sociedade se desarmassem e deixassem que o Estado cuidasse de todos com justa igualdade. Quem poderia acreditar nisso? Primeiro, não é verdade que a sociedade esteja armada: pouquíssimas famílias têm armas em casa. A bandidagem está armada, mas não estava no referendo, claro. É verdade que a arma doméstica é causa de homicídios. O sujeito que enche a cara é muito mais perigoso se tem um 38 em casa. Mas este é um problema menor na questão geral da segurança pública no Brasil. Em resumo, tentaram vender o desarmamento doméstico por mais do que valia.
E, finalmente, quem acreditaria que o governo cuidaria de tudo, quando a experiência diária dos cidadãos topa com falhas dos serviços públicos?
O pessoal do "não" foi menos incompetente. Vendeu uma mentira – a de que os cidadãos, tendo direito à compra de armas, estão mais seguros, tese da chamada bancada da bala. Mas outra parte da campanha do "não" contou uma verdade muito forte: o governo não está conseguindo fornecer a segurança. Este foi o ponto essencial.
A mentira não pegou. Se tivesse sido aceita, a venda de armas deveria aumentar, na medida em que as pessoas, graças ao debate, se teriam convencido de que precisavam de uma arma. Não aconteceu.
Por outro lado, na mídia, jornalistas e intelectuais, ainda que em minoria, brandiram o argumento liberal. A tese: depois de me proibirem de comprar uma arma, vão acabar me proibindo de comer bacon porque ameaça a saúde pública. Isso fez todo o sentido, nas circunstâncias.
Tudo considerado, a vitória do "não" não foi um triunfo liberal à antiga. Não venceu a tese de que os indivíduos cuidam melhor de sua segurança com suas próprias armas. Mas venceu o argumento liberal quando se disse que o Estado brasileiro está grande demais e ineficiente demais.
Só que isso ficou meio difuso. Se o debate tivesse sido mais claro, resultaria do referendo uma política de segurança, com as respectivas lideranças políticas.
E não apareceu nada disso. Por quê? É o tema do próximo artigo.
Comentário da cientista política Lucia Hippolito na CBN:
"As revelações da revista Veja a respeito de contribuições financeiras de Cuba ao PT e à campanha de Lula em 2002 são a quarta menção a dinheiro estrangeiro abastecendo contas do PT.
Antes de falar nas outras três, é preciso falar das suspeitas de boa parte da imprensa e de gente que entende do assunto.
O dinheiro mencionado por Veja não seria cubano, mas do próprio PT. Segundo essas suspeitas, em vez de depositar as doações ilegais em paraísos fiscais do tipo Suíça ou ilhas Cayman, o PT teria preferido depositar num cofrinho em Cuba, que conta com a confiança total de José Dirceu.
Aí, quando foi necessário lançar mão dos recursos aqui no Brasil, ou, como se diz no mercado financeiro, "internar" o dinheiro, recorreu-se ao conto de fadas do "ouro de Cuba". Igualzinho ao "ouro de Moscou" de outros tempos.
De qualquer maneira, é preciso investigar essa história a fundo. Porque, como sabemos, a primeira justificativa para cassar o registro de um partido político é a comprovação de recebimento de dinheiro do exterior. A Constituição brasileira proíbe, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos proíbe.
Por bem menos do que isso, o registro do Partido Comunista Brasileiro foi extinto em 1947, e os mandatos dos parlamentares comunistas em todo o país foram cassados em 1948. Isto, em plena vigência do regime democrático. Nada a ver com a ditadura.
As três outras notícias de dinheiro estrangeiro alimentando o PT são, primeiro, direto de Muhammar Kadhafi, ditador da Líbia. O assunto foi tratado com alguma superficialidade, até porque são tantas as denúncias, tantas as surpresas, que mal dá tempo de separar o que é importante do que é fantasia.
Em segundo lugar, tem o dinheiro de Taiwan. Surgiu no noticiário pela voz da ex-mulher do agora ex-deputado Valdemar da Costa Neto. Uma viagem a Taiwan, uma mala de dinheiro, uma mega doação ao PT e a Lula. Embora a ex-mulher seja testemunha ocular, com carimbo no passaporte, tudo passou a ser tratado como maluquice de uma doida ressentida, além de repudiada pelo maridão.
O terceiro dinheiro estrangeiro mencionado é mais antigo. Data de 1989 e teria vindo, segundo fontes sérias, da Fundação Friedrich Ebert, alemã. Segundo essas fontes, o dinheiro veio vindo com regularidade, trazido por um padre muito conhecido em Brasília, amigo de Lula e do PT.
É compreensível que, antes da queda do Muro de Berlim, o PT partilhasse da idéia internacionalista de "trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos". Portanto, receber doações de um partido estrangeiro mais abonado não tinha nada de reprovável. Tudo fazia parte da grande revolução proletária internacional.
Acontece que o Muro de Berlim caiu em 1989, e alguém precisa avisar o PT. Além disso, as leis brasileiras proíbem expressamente doações estrangeiras a partidos políticos.
Até quando o PT vai zombar das leis, vai achar que caixa dois é apenas um erro, que receber dinheiro estrangeiro faz parte da cultura local e que tudo não passa de uma conspiração das elites contra um presidente operário?"
Um por todos e todos por um
Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo (30/10/05)
A afirmação recente de Delúbio Soares de que em três ou quatro anos o escândalo do "mensalão" será esquecido e tudo "acabará virando piada de salão" vem simplesmente explicar o ar de deboche com que ele respondia às perguntas dos deputados nas CPIs. Essa não é a atitude de quem assume os crimes que cometeu nem muito menos de quem terá que pagar dezenas de milhões de reais de empréstimos.
Delúbio sempre esteve encenando uma farsa, já que nunca houve empréstimo nenhum, e confiava na impunidade. Agora, ao ser expulso do partido, chorou, negou que fosse o único responsável pelas falcatruas, mas prometeu não entregar ninguém. Trata-se, na verdade, de um jogo de cartas marcadas, em que ele tem como parceiros o presidente Lula e os integrantes do Campo Majoritário. Só que a sua punição faz parte do jogo, uma vez que assumiu toda a culpa sozinho.
E por que o fez? Antes de tudo, porque, sendo o tesoureiro do partido, não poderia se eximir dela; depois, se abrisse a boca, comprometeria a todos os outros dirigentes. Além do mais, assumindo-a, abreviaria o escândalo que ameaçava engolir o partido e o governo. Comportou-se como um "herói" e, por isso, muitos choraram no momento de sua expulsão. O PT fica devendo uma estátua a Delúbio.
Safar o partido: este é o ponto fundamental para o PT e para Lula, que são uma só e mesma coisa. Delúbio sacrificou-se por essa causa, e isso explica tudo o que tem ocorrido com respeito à crise do "mensalão": é imprescindível salvar Lula, porque, sem ele, não há o PT, e salvar o PT, porque, sem ele, não há Lula. De Lula a José Dirceu, de Delúbio a Genoino, de Tarso Genro a Berzoini, estão todos num mesmo barco, que ameaça afundar. O lema, portanto, é: um por todos e todos por um, ainda que alguns tenham que entregar o pescoço ao cutelo.
Durante toda a crise, a preocupação dos petistas envolvidos era preservar a imagem de Lula: para todos os efeitos, ele nunca soube de nada, nunca decidiu nada. Genoino também de nada sabia e José Dirceu tampouco. E nós todos nos perguntávamos: como pode, se milhões de reais foram transportados em maletas, em cuecas, em carros-fortes? E os empréstimos bancários concedidos sem qualquer garantia? É, mas ninguém tinha nada a ver com nada, só Delúbio...
Sim, porque, se soubessem, desabariam de uma vez o PT, o governo e a imagem do líder. Quando o escândalo atingiu Genoino, presidente do PT, Lula logo o substituiu por Tarso Genro. Este, com a bomba na mão, exagerou: prometeu refundar o partido, isolar José Dirceu e negar legenda aos deputados que renunciassem ao mandato. Lula pôs as mãos na cabeça. Tarso Genro enlouquecera: refundar o PT era o mesmo que devolvê-lo ao radicalismo de origem, acabar com o Campo Majoritário. E o cara ainda pretendia candidatar-se à presidência do partido...!
Lula, pragmático como sempre, arredou a candidatura dele e pôs a de Berzoini, que logo anunciou: não afastaria Dirceu nem refundaria coisa nenhuma. Claro, falar em refundar é admitir que todo o partido está comprometido com a lambança, quando o que interessa é mostrar que ele se manteve incontaminado. E logo surgiu na televisão: "PT - mudar para continuar a ser o melhor". Leia-se: não mudar para continuar o mesmo... Lula nunca pensou em refundar o PT, e sim em abafar o escândalo, fingir que queria a punição dos culpados, dando a entender que não há culpados, mas apenas vítimas de calúnias sem provas.
A Lula o que importa, acima de tudo, é preservar-se e preservar seu governo. Terá que salvar o PT, porque, sem ele, desabará e, para sorte sua, o PT terá que salvá-lo, porque, se não o fizer, afundará também. Assim temos um jogo em que, de fato, se tudo der certo, os dois ganham, ainda que seja essa uma vitória de Pirro. Se é verdade que nem Lula nem o PT sairão ilesos deste episódio, a esta altura do jogo qualquer tostão é lucro.
Quando ficou evidente que seria impossível evitar a cassação dos implicados no "mensalão", Lula chamou todos os petistas do Congresso e, depois de afirmar que os acusados não eram culpados, aconselhou-os a renunciar, pois o governo não iria defendê-los. Claro, não lhe interessa manter na mídia as notícias do "mensalão" nem muito menos envolver o seu governo na defesa dos corruptos.
Mas, vejam bem, preservar a Lula e ao PT implica inevitavelmente a reeleição de Lula. Se Lula não se candidatar, ele e o PT passarão ao segundo plano no quadro da política nacional. Portanto, a candidatura de Lula é fato consumado, a menos que ele e seu partido sofram um súbito ataque de humildade, o que é mais difícil de ocorrer do que galinha ciscar para a frente.
Admitindo que nossa tese esteja certa, resta saber qual será, na campanha eleitoral de 2006, o discurso do candidato Lula, apoiado num partido desgastado e dividido ao meio. Se defender a política econômica de Palocci, o PT se desintegra e ainda corre o risco de ter contra si muita gente que o apoiou em 2002; se se atrever a defender a ética na política, receberá em troca a gargalhada geral do eleitorado. Salvo melhor juízo.
VEJA
Oposição quer investigar dinheiro de Cuba em CPI. E o começo seria Duda Mendonça
31 de Outubro de 2005
A oposição deve definir nesta segunda-feira uma estratégia diante da informação de que a campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu 3 milhões de dólares de Cuba. Deputados e senadores do PSDB e do PFL querem apurar a história convocando todos os envolvidos para depor em uma das CPIs em andamento no Congresso.
A linha de investigação a ser adotada pelos partidos de oposição pretende basear-se em três suspeitas de crime: dinheiro gasto e não declarado, o que contraria a Lei Eleitoral; pagamentos em contas no exterior sem comunicado à Receita Federal, o que indica crime contra a ordem tributária, e um partido, o PT, beneficiado por recursos externos. Essa prática é proibida pela Lei dos Partidos Políticos e prevê como pena a cassação do registro da legenda.
Para os parlamentares, a lista dos depoentes deverá incluir o ministro da Fazenda Antonio Palocci, um dos coordenadores da campanha de Lula. Em entrevista a VEJA desta semana, o ex-assessor Rogério Buratti diz que foi consultado a pedido de Palocci sobre como trazer para o país 3 milhões de dólares de Cuba.
Para muitos parlamentares, a investigação-chave deve concentrar-se nos gastos com publicidade e nos pagamentos feitos ao publicitário Duda Mendonça. Ele admitiu ter recebido 9,5 milhões de dólares por uma offshore nas Bahamas, com conta em Miami. "Duda diz que recebeu no exterior por serviços prestados em 2003 ao PT, não em 2002, durante a campanha presidencial. A investigação completa das contas de 2002 vai mostrar que foram pagamentos para a campanha", disse o deputado tucano Eduardo Paes (RJ), da CPI dos Correios ao jornal O Estado de S.Paulo. Para o tucano, a "oposição foi até agora conivente com a irresponsabilidade do PT e do governo. Blindamos o Lula quando não investigamos o suficiente para mostrar que certas determinações legais foram descumpridas na campanha."
Segundo o senador Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM), a representação que a oposição apresentará ao Ministério Público nesta semana pedirá apuração mais ampla sobre as contas de campanha de Lula. Virgílio diz que o MP deve entrar no caso após os envolvidos prestarem depoimento nas CPIs.
O presidente Luís Inácio Lula da Silva e o ministro Antonio Palocci (Fazenda) conversaram por telefone no sábado para discutir a estratégia adotada a partir de agora. A preocupação de Lula é que seu nome seja envolvido de forma mais direta na crise política. Se comprovado o envio de dinheiro de Cuba ao PT, o partido pode ter seu registro cancelado e Lula não poderia concorrer à reeleição no ano que vem.
VEJA - Reportagem de VEJA desta semana informa que o comitê eleitoral de Lula recebeu 3 milhões de dólares do governo cubano entre agosto e setembro de 2002. A reportagem descreve ainda qual teria sido o percurso do dinheiro até São Paulo - o transporte foi feito em três caixas de bebida que chegaram a Brasília, foram levadas para Campinas e entregues em São Paulo para o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares.
As duas fontes citadas na reportagem são Rogério Buratti - que recentemente denunciou um suposto esquema de propinas na prefeitura de Ribeirão durante a gestão de Palocci - e Vladimir Poleto, outro ex-assessor do ministro da Fazenda. O principal articulador do esquema, citado pelos dois, seria o também ex-assessor de Palocci Ralf Barquete, que morreu em junho de 2004, vítima de câncer.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os principais dirigentes do PT já não acreditam em qualquer acordo de paz com os partidos de oposição em relação às informações sobre o dinheiro de Cuba. Para os auxiliares mais próximos, Lula tem dito que os tucanos e os pefelistas ultrapassaram o limite da convivência política possível com o bombardeio feito sobre seus familiares e com os ataques pesados sobre seus assessores diretos.
Disposto a referendar uma guerra contra a oposição e setores da mídia, o presidente tem dito que a oposição não encontrou nada de concreto contra ele e tenta agora criar um clima para seu impeachment ou seu eventual afastamento voluntário da sucessão de 2006.
De acordo com reportagem do jornal Folha de S.Paulo, Lula tem dito em conversas reservadas que, se a oposição levar a sério a tese de impeachment, ele poderia seguir a linha do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que dividiu o país ao meio ao partir para uma luta direta contra a mídia e a oposição de seu país, que tentou, sem sucesso, tirá-lo definitivamente do poder com um golpe, em abril de 2002.
Ainda de acordo com a Folha, naa avaliação do Palácio do Planalto, se a oposição voltar a entoar o discurso de impeachment, o presidente e o PT teriam duas saídas. A primeira seria insistir no caso Eduardo Azeredo, senador tucano que quando candidato ao governo de Minas recebeu recursos de Marcos Valério por meio de caixa dois. A segunda ressuscitar suspeitas de corrupção da gestão FHC que o PT deixou de lado na transição de governo com o PSDB em 2002.