Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, abril 04, 2005

no mínimo | Augusto Nunes:A História não nos absolverá



04.04.2005 | E se esquadrilhas de discos-voadores deixassem o imaginário popular, cruzassem o espaço dos relatos pouco verossímeis e se materializassem nos céus do planeta azul? E se astronaves de contornos intrigantes aqui despejassem, em levas sucessivas, criaturas forjadas numa civilização muito mais avançada em todos os campos do conhecimento? E essa raça desconhecida se valesse de variada metodologia, incluindo trapaças, subterfúgios, a persuasão impositiva ou a brutalidade sem limites, para dominar os donos da terra e dela apossar-se? Como reagiriam os brasileiros a surpresas de tal modo desconcertantes? O que será de nós?, haveríamos de perguntar e perguntar-nos.

Deixemos de delírios, podem estar murmurando neste momento os excessivamente sensatos. Pois em 1500 uma versão desse espetáculo, tão deslumbrante e tão terrível, começou a ser encenada no litoral da Bahia – e ainda não chegou ao epílogo. Os conquistadores vieram pelo mar, a bordo das caravelas. Pareciam invencíveis como extraterrestres tripulando espaçonaves. Dispunham de vantagens abissais sobre aquela gente primitiva, ingênua, desprovida de instrumentos de guerra capazes de permitir a expulsão dos invasores.

O genocídio demoraria a ganhar velocidade. Os pioneiros fundaram cidades ao longo da orla e ali se espreguiçaram por quase 200 anos. Outros agiram desde o momento do desembarque, como os jesuítas, sempre expeditos a serviço do Senhor. Os religiosos dedicados à conversão dos indígenas lhes confiscaram os próprios deuses, venerados durante milênios, para induzi-los a adorar o Deus dos católicos. Seria a primeira flechada no coração do índio brasileiro.

A segunda atingiu o alvo simultaneamente: dialetos indígenas foram substituídos pelo português de Portugal, disseminado nas rezadeiras sem fim. Os europeus talvez já soubessem que um povo só existe como nação se tiver língua própria. A terceira flechada, igualmente disparada pelos emissários de Cristo, consumou-se quando se resolveu cobrir a genitália dos nativos com farrapos fidalgos ou trapos esquecidos por marinheiros. Não eram exatamente roupas. Eram meios de transporte perfeitos para micróbios decididos a infiltrar-se no indefeso organismo indígena. E as doenças importadas começaram a matar.

Com a escalada da Serra do Mar, o horror se tornaria endêmico. Multidões de índios foram escravizadas. Os que tentaram resistir com arcos e zarabatanas sucumbiram a armas de fogo. Mais tarde, reservas demarcadas pelos governos, com base em critérios confusos e fantasias insustentáveis, sofreram seguidas amputações decretadas pela ganância de fazendeiros, madeireiros, caçadores. É pouco razoável sonhar com a preservação integral da cultura das selvas; mais cedo ou mais tarde as tribos seriam expostas ao contato com o homem branco. Mas poderia ter ocorrido algum tipo de aculturação mais suave, branda, misericordiosa.

O que houve foi apenas a violenta anexação de terras, homens e mulheres. Os índios perderam a identidade, perderam o rumo, perderam seu mundo. Eram milhões no século 17, hoje não chegam a 150 mil. Um punhado de tribos no extremo norte, na fronteira com a Venezuela, nunca manteve contato com brancos. São as poucas que vivem em paz. As demais agonizam, agredidas pela incompetência de siglas como a Funai e o Incra, viveiros de burocratas que só viram índios em faroeste americano. Para esses, trabalhar nas cercanias de malocas é um estorvo.

Constatada a derrota irreparável, os antigos donos do Brasil há tempos parecem contentar-se com o mínimo indispensável ao ofício de viver: um pedaço de terra que lhes permita caçar, pescar e preservar meia dúzia de tradições. E até isso lhes negamos. A História não nos absolverá.


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