Horas antes do fim do prazo legal (“Aos 44 do segundo tempo”, diria o próprio Lula), o presidente da República assinou o decreto que garante a remanescentes de tribos guaranis a posse definitiva de uma reserva em Mato Grosso. Menos mal para os índios, fustigados por invasores cada vez mais gananciosos, cada vez mais ferozes. Muito bom para Lula, convalescente do relatório divulgado na véspera pela Anistia Internacional.
O documento trata da questão indígena no Brasil. É uma leitura desconfortável para Lula e companheiros do PT. Altos ou baixos, todos sempre consideraram a entidade acima de qualquer suspeita. É tarde para tentar descredenciá-la. “Os povos indígenas parecem estar bem abaixo na lista de prioridades federais”, registra o relatório. “Passados mais de dois anos, não há sinais de que o governo desenvolveu uma estratégia coerente para tentar resolver os diversos problemas enfrentados pelos índios”, afirma outro trecho. O título do documento, aliás, prenuncia o tom do texto: “Estrangeiros no nosso próprio país”.
Se redigido por algum índio, esse “nosso” no título faz sentido. Se é obra de branco, deve ser expurgado. O Brasil foi dos índios por milhares de anos. A troca de dono começou com a chegada de caravelas enviadas por caciques usurpadores, chefes de tribos obcecados pela conquista.
A assinatura de Lula deverá abrandar, ao menos por algum tempo, a gula de fazendeiros que reivindicavam fatias enormes da reserva com um argumento curioso: queriam de volta o que fora deles. Parece piada. Talvez o Brasil seja uma grande piada.
Pena que ainda não haja, espalhados pelo país, advogados índios bons de serviço, dispostos a lutar com armas de efeito moral, frágeis na prática mas muito fascinantes.
Que tal confrontar nosso plácido ministro da Justiça com ações baseadas no uti possidetis, princípio jurídico consolidado quase 500 anos antes de Cristo? Dele derivou o direito de usucapião, que garante a posse da terra a quem a tenha usado por determinado período de tempo.
O argumento só espera por juristas nascidos nas selvas, que reivindicariam a devolução de todo o Brasil aos antigos donos. Os índios.
A idéia pode ser enriquecida com a renúncia à retomada do lugar onde hoje existe Brasília. A ilha da fantasia seria promovida a nação independente. Ali permaneceriam, sem direito a atravessar a fronteira, todos os pais da pátria abrigados nos Três Poderes, todos os assessores, todo o pessoal do Incra, toda a turma da Funai. Sobretudo a turma da Funai, que ousou contestar o relatório: com Lula, garante, a vida nas aldeias só melhorou.
Jamais saberão dessa ótima notícia as crianças que morreram ou estão morrendo de fome nas aldeias em Dourados. Nem os remanescentes guaranis que, adultos, são infantilizados pela bebida, expostos à corrupção inoculada pelos brancos. Mas a sigla que no passado mereceu algum respeito já não engana quem é do ramo, caso dos especialistas da Anistia Internacional. Hoje, a Funai é a Febem das malocas. Não recruta indigenistas ou sertanistas, é avessa a técnicos eficazes. Prefere arranjar emprego para companheiros sem serviço.
Os índios dependem do comovente desprendimento de figuras como Zelik Trajber, único pediatra da reserva de Dourados. Polonês naturalizado brasileiro, formado em Cuba, ele enfrenta teimosamente a falta de medicamentos, de assistentes, até de dinheiro: o salário de R$ 5.500 chega invariavelmente atrasado. “O homem branco, sem dialogar com os índios, decreta de cima para baixo ações mirabolantes que nunca funcionam”, resume. Na raiz do drama, insiste Trajber, está o problema da terra. “As tribos precisam de espaços maiores para viver com tranqüilidade e preservar valores ancestrais”, diz. “Os índios simplesmente não cabem nas minúsculas reservas onde estão aglomerados. É muito fácil culpá-los.”
O extermínio começou há mais de 500 anos. Sobram evidências de que não será interrompido pelo governo do presidente Lula.
Mudanças na vida real
habituou- se de tal forma a mentir deliberadamente, sem ficar ruborizada, que parece não notar relevantes mudanças em curso no mundo real. Os brasileiros vão ficando mais espertos. O barulho provocado pela extorsão tributária embutida na Medida Provisória 232 é um excelente exemplo. Da reação negativa, e em escala nacional, só escapou a correção na tabela do Imposto de Renda, que beneficia pessoas físicas e vinha sendo protelada há tempos.
A Receita Federal descobriu que não poderá inventar mais tributos para compensar supostas perdas na arrecadação. O governo que trate de controlar a gastança.
Mágica o homem já fez
Depois do audacioso discurso de estréia como milagreiro da Previdência Social – prometeu economizar mais de R$ 20 bilhões no curto período de dois anos –, o ministro Romero Jucá não tem tido chances e detalhar como se consumará tal façanha.
Ta mpouco vêm sobrando tempo e tranqü ilidade para cuidar da salvação de um sistema previdenciário em frangalhos. É que Jucá anda ocupado demais na busca de explicações e desculpas para certos negócios malcheirosos nos quais se meteu.
Investigações promovidas desde setembro passado pelo Ministério Público Federal transformaram Jucá em “suspeito de crime contra o sistema financeiro”. O jornal Folha de S. Paulo comprovou que, decidido a obter um em prés timo bancário para a Frangonorte, Jucá, sócio da empresa, ofereceu em garantia sete fazendas das quais seria o dono.
Não pertencia a Jucá um mísero metro quadrado daquelas terras. Mas o dinheiro saiu. Coisa de mágico. Talvez por isso tenha virado ministro.
O guardião das famílias
Lincoln Magalhães da Rocha, 68 anos, ministro do Tribunal de Contas da União, é o que se pode chamar de “homem do lar”. Filho ex tremoso, marido exemplar, defende a preservação dos laços que unem grupos familiares. Seu parecer será contrário à representação do Ministério Público Federal que pede a exoneração de parentes de deputados contratados sem concurso. “Não podemos discriminar a família legalmente constituída, um dos pilares da sociedade”, declama. Bom para os clãs parlamentares. Quanto às famílias pobres, essas se unem no desemprego. Não há ninguém a exonerar.
A voz estridente da rua
O leitor Luiz Antônio A. Pereira enviou ao colunista uma mensagem que merece reprodução integral. Resume exemplarmente o coro de vozes que ecoam com progressiva intensidade nas ruas do Brasil, mas parecem incapazes de chegar aos tímpanos de Lula da Silva. Tire os áulicos da sala e leia o que se segue, presidente.
“Faz pouco mais de um ano que está sem explicação decente o fato de o ministro José Dirceu ter mantido em seu gabinete um servidor corrupto, hoje notório Waldomiro Diniz. Ao presidente Lula isso não parece incomodar. Tampouco lhe parece incômodo passar por velhaco ao ordenar correção da tabela do Imposto de Renda, aumentando impostos de pequenos empresários para compensar essa perda’. Nem mesmo o começo da implosão da Lei de Responsabilidade Fiscal deixa constrangido o presidente.
A implosão, aliás, foi armada para salvar o pescoço da irresponsável companheira Marta Suplicy. O Legislativo não pune o deputado André Luiz, confesso mandante de crimes. Aumenta suas verbas em 25%, enquanto servidores federais devem se contentar com 0,1%. Liderado por Severino Cavalcanti, flor maior do pântano, acrescenta aos gastos do país R$ 30 bilhões.
Sem qualquer pudor, Severino pendura bandos de parentes e agregados em órgãos federais. O Judiciário, representado pelo ministro Nelson Jobim, presidente do STF, propõe um conluio com Severino para aumentar seus vencimentos mensais em cerca de R$ 3 mil. Muito pouco para tão grande estrago na imagem de Jobim e dos juízes.
Raramente se viu uma conjunção tão lastimável de descalabros praticados simultaneamente pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário. Os Três Poderes perderam controle sobre os próprios apetites. E o governo decide torrar dinheiro em mais uma campanha publicitária, destinada a ‘aumentar a auto-estima do brasileiro’.
É o deboche institucionalizado. De há muito nós sabemos que somos o melhor deste país. As autoridades é que não conhecem o povo que tão mal representam.”
Em visita a um primo que o hospeda nas passagens por São Paulo, o Cabôco quis conferir a agitação noturna na zona boêmia que abrange a Vila Olímpia e o Itaim.
No começo da madrugada do dia 20 de março, domingo, confirmou que a capital paulista é uma imensa fábrica de cenas surpreendentes. Viu passar um tanque militar tripulado por sete jovens paisana – dois pilotos e cinco alegres passageiros. Minucioso, anotou a placa: DBQ6242. Vermelha.
O Cabôco tem acompanhado a seqüência de operações militares pouco rotineiras: as Forças Armadas ajudaram, por exemplo, a botar ordem no Espírito Santo, acalmar o Sul do Pará e socorrer o sistema de saúde do Rio. Quer saber se, agora, o Exército pretende domar o trânsito em São Paulo.
augusto@jb.com.br
[03/ABR/2005]
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