Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, abril 15, 2005

Merval Pereira:Medo turco



ANCARA, Turquia. A conferência sobre o Islã que a Academia da Latinidade promove aqui na Turquia, reunindo acadêmicos de várias partes do mundo, inclusive americanos, como uma maneira de buscar o diálogo do Ocidente com o Oriente, teve em vários momentos a explicitação do chamado “choque de civilizações” e, em alguns outros, ficou claro que os avanços tecnológicos, paradoxalmente, podem ser utilizados tanto para promover a aproximação entre cidadãos de partes distintas no mundo quanto para defender retrocessos como o fundamentalismo religioso.

O príncipe da Jordânia El Hassan bin Talal, fundador do Parlamento das Culturas, em Istambul, e que, com sua ONG Partners in Humanity Program (Parceiros para Programas Humanitários), desenvolve projetos para melhorar o entendimento entre o mundo muçulmano e os Estados Unidos, anunciou que vai instalar uma rede global de videoconferência através de satélite para estimular debates que possam aproximar os povos.

E deu um exemplo de como as coisas podem acontecer: ele promoveu recentemente uma conversa, via e-mail, de um pastor no interior da Jordânia e um agricultor americano de Albuquerque, no Novo México, Estados Unidos. Os dois trocaram experiências sobre a criação de ovelhas. E o príncipe ironizou: “Um perigoso terrorista muçulmano conversando com um representante do imperialismo americano”.

O primeiro grande choque de idéias surgiu quando o professor de ciências políticas da Universidade de Teerã Hossein Seifzadeh defendeu uma transição democrática no Irã para um regime que não seja nem o fundamentalismo islâmico, nem uma democracia laica. Uma espécie de democracia relativa, que compreendesse e absorvesse o papel dos partidos religiosos. O professor Seifzadeh formou-se em Harvard e em Berkeley, nos Estados Unidos, e faz parte da ala chamada progressista da cultura iraniana, tendo sido preso durante o surgimento do regime dos aiatolás.

Converteu-se depois em um islâmico fervoroso, e hoje tenta adaptar uma eventual evolução democrática, propondo um modelo híbrido de um Estado secular que respeitaria a diversidade cultural, incluindo partidos religiosos. Com sua formação acadêmica fortemente influenciada pelos americanos, o professor Seifzadeh fez sua apresentação num power point, que normalmente não é utilizado para palestras acadêmicas, mas sim em empresas e reuniões comerciais. E manipulando uma tecnologia altamente sofisticada, tentou vender uma transição democrática que não foi bem recebida pelo público, basicamente formado por acadêmicos e estudantes na Universidade de Bilkent.

Sua análise da situação atual do Irã, a condescendência com o radicalismo religioso, e a falta de uma visão crítica sobre a situação de inferioridade em que vive a mulher iraniana foram muito combatidas. A crítica mais contundente foi da professora Binnaz Toprak, da Universidade do Bósforo, em Istambul, que lembrou que não é possível haver um Estado democrático onde os direitos individuais não sejam respeitados, onde cada cidadão ou cidadã não possa escolher com quem vai se casar, não possa decidir seu futuro. Sob fogo cruzado, Seifzadeh tentou moderar citando o Alcorão: “A mulher é a beleza de Deus, e o homem é sua glória”. Só fez piorar a situação.

O sociólogo iraniano Ehsan Naraghi, que também esteve preso durante o regime do aiatolá Khomeini, defendeu enfaticamente a democracia, sem subterfúgios. Ele defende a tese de que o regime democrático e laico da Turquia e a entrada para a Comunidade Européia são exemplos para toda a região, inclusive o Irã.

Por seu lado, os intelectuais turcos presentes ao debate se apressaram em ressaltar as diferenças entre os dois países, reafirmando o caráter laico do governo da Turquia, embora a maioria dos habitantes seja muçulmana e o partido islâmico (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) esteja no poder, com grande força política.

A democracia parece tão consistentemente arraigada na Turquia que os próprios líderes políticos do partido islâmico fazem questão de ressaltar que a religião não se mistura com o estado turco. E as contradições são tão grandes que chegam ao ponto de uma das filhas do primeiro-ministro Recip Erdogan ter ido estudar nos Estados Unidos para poder usar o chador (véu), pois pela lei turca é proibido, dentro das universidades, demonstrações explícitas de qualquer religião.

O primeiro-ministro é de uma família islâmica, e ele mesmo foi preso, antes de seu partido chegar ao poder, por declarações religiosas radicais. Ele é herdeiro político de um grande líder da política islâmica, Necmettin Erbakan, que foi derrubado do poder pelos militares ao tentar aprofundar os vínculos religiosos do governo.

Erdogan não pôde assumir o governo logo que seu partido chegou ao poder porque ainda respondia ao processo, e a legislação teve que ser alterada para que ele pudesse enfim se tornar primeiro-ministro. Mas em nenhum momento adota uma postura islâmica radical, pois há pesquisas de opinião que mostram que a maioria da população rejeitaria. Em mais um dos muitos paradoxos turcos, o partido islâmico está no poder com ampla maioria — tem dois terços do Parlamento — e parece imbatível para a reeleição, dentro de dois anos, contando sobretudo com o apoio da população pobre, que é em sua grande maioria islâmica.

O “medo turco”, que tomou conta da Europa no século XVI com a expansão do Império Otomano, continua na fantasia da Europa atual. Mas a elite turca rejeita a mistura da religião com a política, e o pleito para a entrada na Comunidade Européia praticamente impede que uma reversão de um governo laico para um religioso se concretize.
Jornal O Globo

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