Não está em discussão no momento qualquer tratado a respeito, mas faz falta uma convenção internacional proibindo, em qualquer idioma, o uso da palavra complicada para agredir o homem simples.
Ao longo da História, a linguagem cifrada tem sido notório instrumento de conquista e sustentação do poder. Em culturas primitivas, sempre foi comum que pajés, xamãs e outros curandeiros recorressem a danças enigmáticas e algaravia incompreensível para produzir curas e profecias. Enquanto não fossem entendidos, o monopólio estava garantido. Sobre esse princípio básico, nos dias de hoje comunicólogos de todos os matizes constroem impérios.
Hoje, há quem atribua a motivos semelhantes as receitas médicas que recebemos, só decifráveis por farmacêuticos. Provavelmente em quase todos os casos é nobre o motivo de gatafunhos e garabulhos: visam a impedir a automedicação.
A vaidade frívola também explica a linguagem cifrada; por exemplo, o meu uso, logo aí em cima, de garabulhos e gatafunhos.
Na área do direito, o abuso da ininteligibilidade (palavras desse tamanhão fazem parte do nosso tema) tem escassa desculpa. Ela é uma arma do erudito contra o humilde. E poucos atos do Estado contra cidadãos comuns, excluindo-se a violência física, são tão covardes como o uso do vocabulário rebuscado e do latim sem qualquer sentido prático.
São exibições de erudição — embora nem sempre de cultura — que desrespeitam o homem humilde tanto quanto um tapa no rosto. Há humilhação mais gratuita e covarde do que mandar para a cadeia alguém que não sabe por que delito está sendo punido?
Os maiores culpados são juízes, promotores e advogados — mas seria injusto excluir da lista os jornalistas que copiam aquilo que mal entendem e o transmitem, in natura , para o cidadão comum.
Oba, isso vai mudar. A Associação dos Magistrados Brasileiros acaba de criar um comitê para providenciar a reeducação lingüística de advogados, juízes e membros do Ministério Público (perdão: dado o contexto, eu deveria ter escrito “para ensinar a falar melhor”). Registre-se que não se trata apenas de uma missão educativa, visando ao melhor uso do idioma. Trata-se também de um gesto de notável desprendimento: uma nada desprezível abdicação de poder.
Vai dar um trabalhão. E valerá todos os esforços. Começando pela raiz, a AMB fará palestras em faculdades de direito, com uma mensagem comedida, nada radical: a linguagem formal é importante, desde que seja entendida pela maioria da sociedade. Ainda está em discussão se palavras em latim devem ser abolidas. Não é importante, desde que o cidadão comum entenda o que está acontecendo. Muitas vezes, que entenda o que lhe vai desabar na cabeça.
A simplificação inevitavelmente tornará mais fáceis e naturais as relações entre a sociedade e o Judiciário — e mais autêntico o respeito dela por ele.
Caso a proposta inicial progrida, será uma revolução; podemos até esperar que tenha conseqüências no jornalismo que praticamos. No trabalho apressado do jornal de cada dia, não é raro que repórteres cansados e editores assoberbados se limitem a transcrever frases e narrar ações armados apenas de vaga compreensão sobre sentido, alcance e, principalmente, conseqüências.
Se o Judiciário parar de falar em código, perderemos diversos álibis para escrever mal ou mesmo errado. E, caso um dia policiais, cientistas sociais, comunicólogos e homens públicos em geral deixarem de usar os seus lugares-comuns, não nos restará outro caminho senão escrever exclusivamente em simples, bom e belo português.
Jornal O Globo
Entrevista:O Estado inteligente
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