As permanentes crises políticas em que o governo Lula se vê envolvido colocam em xeque nosso “presidencialismo de coalizão”, expressão cunhada há 17 anos pelo cientista político Sérgio Abranches para definir o tipo de presidencialismo exercido no país.
Parece não haver dúvidas entre os estudiosos do assunto de que, para um presidente governar e ser bem-sucedido no Brasil, precisa montar uma coalizão majoritária, cuja base tem que ser partidária, não adiantando tentar comprar apoio no varejo, a cada votação.
Há quem afirme, como os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, da USP, com base na medição do índice de fidelidade dessas coalizões na aprovação de projetos do governo, que o sistema é tão eficiente quanto um modelo parlamentarista.
Essa eficiência, embora contestada por alguns estudos, é geralmente aceita, mas existem algumas premissas para que ela se concretize, e aí entram as peculiaridades do governo petista e, sobretudo no último mês, o surgimento do novo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, para desconstruir as teses acadêmicas. Ou para confirmá-las pela negação.
Os estudos de Limongi e Argelina sobre dados de aprovação de projetos e de disciplina da base do governo mostram que o sistema de coalizão funcionou como no parlamentarismo até no governo Collor, e inclusive nos dois primeiros anos do governo Lula. Todos os governos, desde José Sarney, tiveram um índice de disciplina partidária acima de 90%, de apoio unânime das respectivas coalizões. Os índices de unanimidade de Lula foram de 96,7% no primeiro ano e 90,2% no segundo ano.
Já o cientista político da Fundação Getulio Vargas Octávio Amorim Netto sustenta que só FH governou como um primeiro-ministro. Segundo ele, pode-se afirmar que um governo multipartidário, em um regime presidencialista, assemelha-se aos gabinetes de coalizão formados nos sistemas parlamentaristas quando o presidente obedece às seguintes normas: usa um critério eminentemente partidário de seleção dos ministros; aloca os ministérios aos partidos em bases proporcionais ao seu peso dentro da maioria legislativa do governo; usa mais projetos de lei do que medidas provisórias; e dá poder de veto aos seus parceiros de coalizão sobre os projetos a serem apreciados pelo Congresso.
Estaria o governo Lula obedecendo a esses critérios? A gula do PT para assumir o controle do governo, descendo até aos estados e municípios, e o uso indiscriminado das medidas provisórias, são duas questões centrais para se entender por que o governo Lula tem tanta dificuldade para montar coalizões.
O cientista político Amaury de Souza salienta que a estratégia de construção do governo de coalizão por parte de Fernando Henrique foi verdadeiramente inovadora, usando os poderes presidenciais para formar um “presidencialismo de coalizão racional”, em contraste com o sistema que vinha sendo utilizado de 1946 a 1964, de um “presidencialismo de facções”, que consistia em atrair para o governo apenas partes dos partidos oposicionistas, dificultando-lhes assim a ação.
Segundo Souza, ele recrutou sua base congressual fazendo ministros partidários, e formando seu Ministério proporcionalmente ao peso partidário no Legislativo. Também usou as medidas provisórias e o controle sobre o orçamento garantido pela Constituição de 1988 para manter sua maioria legislativa. O cientista político Sérgio Abranches diz que a coalizão do governo Lula é instável porque a maioria que a compõe é de partidos de corte tradicional, pragmático, clientelista, que não tem qualquer afinidade com o projeto político do PT e, “mais ainda, são caçados pelo PT nas suas bases”.
Ele lembra que o PT cresce atualmente não mais nas regiões metropolitanas, onde cresceu com o sindicalismo, mas no interior, junto com o movimento social, e “o crescimento dele depende da destruição das oligarquias, do desalojamento das oligarquias do poder. Isso cria uma contradição de interesses político-eleitorais praticamente intransponível”.
Para Abranches, “Lula nunca montou um governo de coalizão, que pressupõe, menos que a partilha de cargos, a partilha de poder. Respeitar o território dos aliados, e o PT e o governo nunca respeitaram esses limites”.
Ele exemplifica a situação lembrando que o tema mais importante para os partidos aliados sempre foi “não o Ministério, mas a verticalização”, isto é, chegar nos cargos federais nos estados, “que são as pontas de contatos com os cabos eleitorais, onde você monta a estrutura de comando eleitoral”.
Além do mais, Abranches diz que Lula faz um governo “que fere a regra da proporcionalidade, importante na cultura da coalizão. É a proporcionalidade que faz com que se aceite que um partido maior tenha mais ministérios, ou tenha mais relatores, presidentes das comissões. Tudo na cultura partidária brasileira é proporcional, e vai o Lula e dá dois ministérios para o PCdoB, que é um pequeno partido, e deixa de fora o PMDB”, ressalta.
Sérgio Abranches lembra que também na distribuição de recursos o governo petista é desproporcional: “a principal reclamação dos aliados não é do contingenciamento das verbas, mas sim de que quando o governo abre a torneirinha, abre de forma desproporcional para os aliados que eles consideram mais merecedores”.
Presidencialismo de coalizão (2)
A substituição do chefe da Casa Civil, José Dirceu, na coordenação política do governo é apontada unanimemente pelos cientistas políticos como a grande culpada pela desarticulação da base partidária governista e a conseqüente crise do “presidencialismo de coalizão” à moda petista.
Não vai aí qualquer juízo de valor, mas apenas a constatação de que a articulação política só funcionou no período de Dirceu antes da crise provocada por seu assessor Waldomiro Diniz. O cientista político Sérgio Abranches lembra que a coordenação política pressupõe que o presidente esteja envolvido, mas apenas estrategicamente, não para fazer o varejo.
“E quem faz o varejo tem que ser um efetivo representante do poder presidencial. O acordo que for fechado tem que ser cumprido, não pode depender de consultas adicionais, de autorizações. Ele tem que ter delegação explícita, reconhecida, porque na negociação os temas mudam, as demandas variam e ele tem que ter capacidade de mudar o acordo. O Aldo ( Rebelo, ministro da Coordenação Política) não tem essa delegação”, ressalta Abranches.
Ele acha que com a reforma ministerial que não aconteceu “as coisas pioraram, porque Lula desvalorizou o José Dirceu. E o melhor recurso que ele tinha para colocar na articulação, que era o João Paulo Cunha, também ficou de fora”. Sérgio Abranches acha que a campanha de reeleição vai ser “complicadíssima” para o PT, que está com esperança de fechar acordos precocemente, “mas ninguém vai fazer isso”.
Este é outro consenso entre os estudiosos: assim como a cisão entre PFL e PSDB, no segundo mandato de Fernando Henrique, resultou na derrota de Serra para Lula em 2002, as crises internas no PT podem custar caro na reeleição de Lula. Sérgio Abranches acha que, na verdade, os problemas de Fernando Henrique começaram quando o atual governador de Minas, Aécio Neves, “tomou a Câmara do PFL e desequilibrou a distribuição de poder da coalizão. O PSDB ficou com as presidências da República e da Câmara, o PMDB com o Senado e o PFL ficou ao léu”.
O cientista político Fernando Limongi, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), diz que o maior problema do governo é a briga dentro do PT desde que José Dirceu teve que sair da coordenação política. Segundo ele, o problema para a reeleição está nos estados, nos acordos regionais e em saber quem vai ser o candidato a governador, sobretudo em São Paulo.
“Uma boa parte dessa crise passa pela definição de quem vai ser o candidato, se o Mercadante, se a Marta, se o João Paulo. E o nível de autodestruição que essa briga está atingindo é impressionante”, espanta-se Limongi, que chama a atenção para a acusação de que a ex-prefeita Marta Suplicy quebrou a Lei de Responsabilidade Fiscal: “Não é só o PSDB que está fazendo isso. Se é o governo que está soltando, é porque alguém importante quer inviabilizar a Marta como governadora”.
Outro mistério para ele é entender “quem bancou o Virgílio Guimarães? ( deputado mineiro que se lançou candidato alternativo à presidência da Câmara e gerou a crise que elegeu Severino Cavalcanti).Tem que haver um figurão, uma explicação da luta interna, porque senão ele hoje já estava sacrificado em praça pública”. Para Limongi, o ex-presidente Fernando Henrique “tinha muito mais liberdade dentro do PSDB do que o Lula tem no PT”.
Octavio Amorim Netto, da Fundação Getulio Vargas, ressalta que a capacidade de controlar a agenda legislativa, uma característica dos governos de coalizão majoritária, “existe no governo Lula apenas no seu sentido negativo, isto é, na medida em que os partidos da base têm tido poder de veto sobre algumas medidas, como a reforma eleitoral, vetada por PTB, PL, PSB e PCdoB e a autonomia do Banco Central, vetada pelo PT”. O que está faltando ao governo Lula, segundo ele, é uma agenda positiva que possa ser negociada com o PT e seus aliados. Para ele, Lula lidera “um cartel legislativo sem saber bem o que fazer com ele, além, obviamente, do seu desejo de reeleição”.
O cientista político Amaury de Souza lembra que apesar de todo o sucesso do governo, Fernando Henrique, após a desvalorização do real em 1999, sofreu um declínio de popularidade e a “animosidade entre o PFL e o PMDB minou a força da coalizão e aumentou a visão crítica da opinião pública sobre o Congresso”.
Montar um governo de coalizão é problemático “devido à fragmentação partidária, exacerbada pelas regras eleitorais permissivas”, ressalta Souza. Como exemplo dessa dificuldade, ele destaca que Fernando Henrique, com uma coalizão de cinco partidos, garantia o quórum para aprovar reformas constitucionais, já Lula precisa mobilizar até 11 partidos.
Amaury de Souza chama a atenção para o fato de que o Colégio de Líderes, uma instituição que garantia aos partidos da coalizão uma influência na formação da agenda do Congresso, foi praticamente desativado por João Paulo Cunha quando assumiu a presidência da Câmara, “com uma atitude imperial como a de seu partido”. E o atual presidente, Severino Cavalcanti, apenas agora, depois de muita crise política, resolveu voltar a se utilizar desse mecanismo para organizar a pauta.
Outro problema, lembra Souza, foi o incentivo do Palácio do Planalto à infidelidade partidária, que criou a competição dentro dos partidos aliados, “de políticos que desceram de pára-quedas. Isso corroeu as lideranças dos partidos”, sublinha Amaury de Souza.
Como se vê pela análise dos cientistas políticos nas colunas de ontem e de hoje, o PT é o principal culpado pela crise de governabilidade que volta e meia surge do nada para conturbar o cenário político.
Entrevista:O Estado inteligente
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