Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, abril 07, 2005

Jornal O Globo -Luis Fernando Verissimo:Coisas da corte

A Igreja Católica não é apenas uma das poucas monarquias absolutas que restam. Como seu rei é o representante oficial de Deus na Terra, e é infalível, nunca houve monarquia tão absoluta. O poder da Igreja é em grande parte material, mas se fosse só isso ela já teria seguido o caminho de outros impérios para o esquecimento. Tem o poder emocional da devoção dos seus súditos e o domínio dos símbolos e trâmites que regem esta fé, o poder da encantação. Pode invocar o direito divino para legitimá-la com a autoridade que nenhum outro reino do Ocidente, teocrático ou não, jamais teve. Por isso sobreviveu à sua própria história, com seus lapsos de caráter e períodos negros, e é a última instituição medieval ainda em bom funcionamento no planeta.


Stalin fez pouco do poder da Igreja e uma vez perguntou quantas divisões tinha o Papa, para pretender influir em assuntos terrestres. As hostes do Papa estão aí, enchendo as praças de todo o mundo para lamentar a sua morte, em manifestações cuja intensidade é uma impressionante demonstração de força do poder espiritual. Alguém ouviu falar no império soviético ultimamente? E o Vaticano não precisou nem mobilizar a Guarda Suíça.

A Católica também é a única grande religião do mundo que tem uma corte. Assim, a Igreja pode suprir seus fiéis com doutrinação e uma idéia organizada da sua religião e da sua hierarquia centralizada, mas também pode fornecer o que toda a corte oferece aos súditos, um teatro do poder. As cerimônias coreografadas, as roupas, as pompas, a encantação pelo espetáculo humano tanto quanto pelo mistério.

E a intriga. Em ocasiões como enterros de papas, o Vaticano dá seus maiores espetáculos abertos. Depois, com a escolha do sucessor do Papa, vem o espetáculo in camera da intriga. Nada mais literariamente atraente do que a idéia de conchavos sussurrados nos bastidores da corte decidindo os destinos de um reino, que no caso é o reino do mundo. Não é por nada que o Vaticano tem sido o cenário de tanta literatura especulativa, de tanta conspiração presumida. É a corte quintessencial, uma espécie de Versalhes universal.

Pelas suas próprias leis, a Igreja se privou da sucessão pelo sangue, como acontece em outras monarquias. São vários os príncipes com direito ao posto, e a escolha virá com a inspiração de Deus — que certamente levará em conta as conveniências políticas. Dizem que, pela tradição, depois de um longo papado deve vir um curto, para as coisas se ajeitarem ou os conchavos sussurrados continuarem. Deve ganhar o cardeal que estiver com o pior aspecto.

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