Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, abril 13, 2005

Guilherme Fiuza: Vestibular para herói



13.04.2005 | O ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, andou reclamando de um artigo publicado por alguns famosos economistas brasileiros. O texto fala do preço que se paga no país pelo comportamento instável do Judiciário, isto é, o impacto da estrada esburacada da Justiça no Custo Brasil. É preciso muito espírito de corpo para rechaçar uma crítica dessas – que até o sorveteiro da esquina, com PhD em economia de calçada, poderia fazer. Se Jobim der uma boa lida na sentença do caso Marka, que condenou o ex-presidente do Banco Central Chico Lopes, entre outros, a dez anos de prisão, talvez dê uma ponta de razão a economistas e sorveteiros.

Nem vale a pena cansar a beleza do leitor lembrando a multidão de liminares casuísticas de primeira instância. E todos os empreendimentos travados, somados aos embrulhos tarifários, tributários e mercadológicos que duram toda uma vida, não são tão impressionantes quanto a Justiça que julga de acordo com manchetes de jornal.

O caso do “Propinoduto” é exemplar. Silveirinha e outros fiscais de Fazenda no Rio tinham 30 milhões de dólares na Suíça. A coisa tinha cheiro, jeito e trejeito de corrupção. A imprensa, como é o seu papel, saiu botando o dedo na cara dos suspeitos. Animado com o circo, o juiz Lafredo Lisboa condenou duas dezenas de réus a penas em torno de 15 anos de prisão. E o propinoduto, por onde passava afinal? Ninguém sabe. Não há no processo notícia de uma propinazinha sequer. Foi dito aqui neste espaço que todos os fiscais enjaulados logo estariam livres como pássaros. Foi o que aconteceu, porque mais uma vez o Judiciário trocara a investigação séria pela fantasia do heroísmo súbito.

Nas mais de 500 páginas da sentença (primeira instância) recém-proferida para o caso dos bancos Marka e FonteCindam, o argumento mais forte da Justiça é, novamente, o carimbo do escândalo. Por que Chico Lopes e outros ex-diretores do Banco Central foram condenados a dez anos de prisão?

Em primeiro lugar, a juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, da 6ª Vara Federal, reconhece que um calote geral do Marka, quebrado pela abrupta desvalorização do real (em janeiro de 99), poria em risco a saúde do sistema financeiro. Portanto, a operação do BC de venda de dólares a uma cotação especial para que o banco honrasse seus contratos – o escândalo – é considerada legítima pela juíza. Onde está o crime, então?

A sentença considerou que Salvatore Alberto Cacciola, o dono do Marka, não poderia ter saído do episódio como “um homem ainda invejavelmente rico”. Não há qualquer referência ou informação contábil sobre o patrimônio de Cacciola, apenas a acusação repetida de que se tratava de um homem ganancioso que permaneceu rico. Se este “rico” corresponde a dois carros importados na garagem ou a muitos milhões de dólares no banco, não será por essa sentença judicial que o mundo ficará sabendo.

Literatura à parte, fica a dúvida de por que, exatamente, a juíza achou que o BC tinha a obrigação de confiscar as raquetes de tênis de Cacciola (ou que outros bens pessoais ele tivesse, informação que a sentença deixa no terreno do imaginário). Ana Paula Vieira reúne depoimentos indicando que a gestão do Marka foi temerária, dado o risco considerável, na ocasião, de uma desvalorização do real. Mas deixa de lado tudo o que retira dramaticidade da sua tese: que a desvalorização iria contra o próprio compromisso do governo com o FMI, que foi feita de maneira abrupta e atabalhoada, que ninguém poderia supor que seria uma desvalorização tão forte. E de sobremesa: que naquele momento, o ganancioso e espertalhão Cacciola era o único que não estava apostando contra a moeda nacional. E que seu banco, que era o seu grande patrimônio, virou pó.

Todas as alternativas acima podem estar corretas, mas estão mergulhadas numa névoa de subjetividade que a Justiça não conseguiu dissolver. Pelo menos não a ponto de concluir categoricamente – como fez – que Chico Lopes e seus subordinados desviaram dinheiro público em benefício particular de Cacciola.

A sentença parece uma salada de indícios e quase-certezas, que vão sendo enfileirados na aparente expectativa de que somem pelo menos uma certeza inteira. Uma dessas suspeitas, talvez a mais grave de todas, sugere que um fundo administrado por Cacciola na bolsa de Chicago, o Stock Máxima, responsável por uma fatia de 13 milhões de dólares do prejuízo, na verdade não tinha esta dívida com investidores. Isto é, Cacciola teria embolsado a quantia, e aí estaria a prova definitiva da sua picaretagem – da fraude com dinheiro público.

Mas aí vem o desalento: a investigação esbarrou no sigilo bancário e não produziu provas sobre os tais credores fictícios. A juíza então, no melhor estilo “assim é, se lhe parece”, transformou hipótese em fato e decretou não só que Cacciola embolsou o dinheiro, como que Chico Lopes sabia de tudo e foi cúmplice.

O capítulo sobre o “acerto” do crime de peculato é o mais literário de todos. A sentença se fixa em toda aquela espuma exaustivamente publicada pela imprensa – inclusive o tal bilhete de Cacciola para Chico Lopes, que por si só não quer dizer absolutamente nada, e que a investigação não relacionou a fato concreto algum. Mesmo assim a sentença apresenta-o como evidência de uma articulação escusa. Um momento fértil do Judiciário para reflexão do ministro Jobim.

E lá estão todos os outros elementos já folclóricos do escândalo Marka: o jatinho fretado pelo banqueiro para Brasília, seus intermediários na busca de contato com o presidente do Banco Central, incluindo aquele que se enche de vodca no hotel Saint Paul na véspera do café da manhã com Chico Lopes, que é seu amigo de infância. Tudo muito estranho. Ou tudo muito normal. O freguês escolhe, porque o enredo é só esse mesmo. (A sentença revela ainda que a quantidade de vodca consumida pelo intermediário de Cacciola foi de 21 doses. Enfim uma informação objetiva.)

Há ainda vários outros argumentos interessantes, como o fato de um dos donos do FonteCindam ser ex-funcionário do Ministério da Fazenda – fato apresentado pela doutora Ana Paula como razão sólida o bastante (sem mais um milímetro de investigação) para que Chico Lopes pretendesse favorecê-lo com desvio de dinheiro público.

Junte-se tudo isso, mexa-se bem, e tem-se um bando num incrível flagrante de assalto aos cofres públicos. Ou talvez um flagrante da Justiça trocando a espada pelo holofote.

no mínimo

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