Os fundos privados de aposentadoria e pensões, conhecidos pela sigla AFJP, foram criados pela reforma previdenciária de 1994, no governo Menem. A lei estabelecia que o trabalhador poderia passar do regime estatal para o sistema privado mediante pedido expresso. Como houve menos adesões ao sistema privado do que se esperava, Menem, por medida administrativa pouco divulgada, mudou a regra legal: só ficaria no regime estatal quem assim requeresse por escrito. Assim, a reforma da previdência começou com um passa-moleque aplicado aos trabalhadores.
Graças a isso, os fundos de pensão cresceram muito e hoje têm 9,5 milhões de participantes. Seu patrimônio, de US$ 30 bilhões, foi formado pelas contribuições regulares dos participantes e pelo rendimento das aplicações decididas pelos administradores privados dos fundos.
O argumento utilizado pela presidente argentina para justificar a reestatização da previdência foi a necessidade de salvar os futuros aposentados dos efeitos da crise internacional que já atingiram os fundos de pensão argentinos. "Tomamos essa medida estratégica para proteger os recursos dos aposentados e pensionistas antes que sofressem danos maiores", disse Cristina Kirchner ao assinar o projeto. De acordo com cálculos do governo, os fundos de pensão acumulam perdas de 40% desde o início do ano, por causa da crise financeira. Bancos e instituições privadas também detectaram perdas expressivas dos fundos, mas bem menores do que as divulgadas pelo governo.
Mas, longe de preservar o patrimônio dos trabalhadores, o projeto é "um roubo legalizado", como denunciou o jornal La Nación. De acordo com o projeto, todo o patrimônio dos fundos será transferido para a Administradora Nacional de Seguridade Social (Andes), órgão estatal com funções semelhantes às do Ministério da Previdência. "Os aportes que os trabalhadores realizam nas AFJP não pertencem às administradoras do fundo nem ao Estado", argumenta o jornal. "Pertencem aos depositantes, que confiaram a administração de sua poupança às AFJP com o objetivo de preservá-la da falta de escrúpulos com que, historicamente, as administrações públicas manipularam os fundos previdenciários." Por isso, conclui o jornal, a transferência do dinheiro dos trabalhadores para o Estado, proposta pelo governo, é uma expropriação.
Não é a primeira vez que a família Kirchner ataca os fundos de pensão. Quando ocupou a presidência da Argentina, o marido de Cristina, Néstor Kirchner, impôs uma renegociação forçada da dívida do governo, que resultou em pesadas perdas - em torno de 70% - para os credores, entre os quais os fundos de pensão, que na época detinham bônus estatais no valor de US$ 14,5 bilhões, equivalentes a dois terços de suas aplicações.
Quanto aos reais objetivos dos Kirchners com a reestatização do sistema previdenciário, a segurança futura dos trabalhadores argentinos não parece fazer parte deles. O que mais interessa ao governo neste momento de crise é obter recursos que lhe permitam manter o atual nível de gastos e, ao mesmo tempo, pagar os encargos da dívida externa que vencem em 2009. As dificuldades financeiras do governo aumentaram os temores de novo calote da dívida pública, o que tornou ainda mais difícil para o país a obtenção de recursos no mercado internacional.
Se o projeto for aprovado no Congresso, o que não é certo, o governo Kirchner disporá, além do patrimônio dos fundos, das contribuições regulares dos trabalhadores, de cerca de US$ 5 bilhões por ano. Mas a Argentina perderá sua principal fonte de investimentos privados, que são os fundos de pensão, o que prejudicará seu crescimento. Além disso, sem esses investidores institucionais, a Bolsa de Valores de Buenos Aires "deverá cessar de existir", como afirmou um analista.