A explicação do ministro Celso Amorim repete, em linhas gerais, o discurso recitado ultimamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva: os governos do mundo em desenvolvimento devem atuar de forma coordenada em face dos novos problemas financeiros e da ameaça de uma recessão global. Na recente reunião de chefes de governo do Brasil, da África do Sul e da Índia, ele chegou a profetizar uma revolta dos bagrinhos da economia mundial, mas, em termos práticos, não foi além de uma sugestão de eficácia duvidosa: a adoção, entre os países emergentes e em desenvolvimento, do comércio em moedas nacionais, sem dependência do dólar, numa fórmula semelhante à negociada entre os governos do Brasil e da Argentina.
A adoção dessa fórmula por toda a América do Sul poderia ser, segundo Amorim, um tipo de resposta regional à crise.
Há muita retórica e pouco realismo nessa concepção. O comércio em moedas locais pode ter alguma utilidade, mas seu uso é necessariamente limitado. Não há como dispensar as moedas mais empregadas como padrões de reserva e de pagamento - por enquanto, o dólar e o euro. Só 20% das importações brasileiras, aproximadamente, provêm da América Latina. Os brasileiros pagarão pelos outros 80% com reais, pesos argentinos, bolívares, soles ou bolivianos? Se a proposta de comércio sem dólares for estendida à América Central, será possível incluir na cesta de moedas o quetzal (Guatemala) e a lempira (Honduras), por exemplo. Talvez o Banco Central do Brasil, agora autorizado a fazer swap cambial com seus pares, possa obter estoques dessas moedas em troca de reais. Isso facilitaria, talvez, o pagamento de compromissos com europeus, japoneses e americanos?
Do lado das exportações, não há como negar a importância da América Latina - e não só do Sul - como destino dos produtos brasileiros. De janeiro a setembro deste ano, 21,7% dos dólares faturados pelo Brasil, no comércio exterior, foram obtidos nesse amplo mercado regional. Mas é preciso ver os números com certo cuidado. As vendas brasileiras para os Estados Unidos e para a União Européia poderiam ter crescido muito mais, desde o fim dos anos 90, se o País houvesse fechado acordos comerciais com esses mercados. Nesse período, outros fornecedores, como a China, ganharam participação nos mercados mais desenvolvidos, tomando espaço do Brasil.
Quando se abandona a retórica, a conversa a respeito dos interesses partilhados fica muito mais difícil. Isso foi provado, mais uma vez, pelos desentendimentos entre Brasil, Argentina, China e Índia nas últimas tentativas de salvar a Rodada Doha de negociações comerciais. Além do mais, que tipo de conversa a respeito de cooperação se poderá manter, quando o Brasil e suas empresas são tratados como violadores da soberania nacional por tantos governos da região? A última novidade foi a promessa do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, de reagir a qualquer violação da soberania paraguaia pelo Exército brasileiro em seus exercícios na fronteira. Que violação, e com que propósito? Representantes da Bolívia e do Equador também deverão participar do encontro em Brasília. Que cooperação poderão discutir, se os seus governos só têm cuidado de agredir interesses brasileiros?
A reunião em Brasília poderá ter alguma utilidade, se o governo brasileiro renunciar ao discurso terceiro-mundista e insistir na importância de um comércio mais livre entre os países da região. Talvez se possa falar de proteção contra uma provável invasão de produtos chineses. A retração econômica no mundo rico tornará inevitável a tentativa chinesa de aumentar as vendas, quase certamente em condições de dumping, a outros mercados. Quanto às finanças: o Brasil, é bom lembrar desde já, não pode ser um substituto bonzinho do FMI, se a crise se agravar.