Com armas de fogo e viaturas - o primeiro dos seus ilícitos -, ocuparam uma área vedada a manifestações públicas desde 1987 por motivos de segurança. (Quatro anos antes, no início do governo Franco Montoro, uma multidão de desempregados chegou a derrubar as grades do palácio, antes de serem reprimidos.) É inconcebível que os policiais ignorassem a proibição. Mesmo se estivessem desarmados, não poderiam alegar inocência. Mas o pior de tudo, além do tiro de fuzil em direção ao palácio, do disparo que feriu um comandante da PM, da agressão a um tenente e da depredação de viaturas militares, foi a sua disposição de invadir o Bandeirantes.
Eles sabiam que o governador não receberia nenhuma comissão de grevistas, a propalada razão de ser da sua marcha - Serra havia deixado suficientemente claro que não dialogaria com a corporação enquanto a greve persistisse. E muito menos o faria sabendo que a passeata, quando não o próprio movimento, tinha sido apropriada pela oposição, às vésperas do segundo turno da eleição em que o candidato de que é patrono, o prefeito Gilberto Kassab, lidera as pesquisas. Comentando o confronto, Serra denunciaria a "participação ativa da CUT, que é ligada ao PT, e da Força Sindical, ligada ao PDT" - os primeiros, encabeçados pelo líder petista na Assembléia Legislativa, Roberto Felício; os segundos, pelo deputado federal pedetista Paulo Pereira da Silva.
E foi ele o instigador da tentativa de invasão, afinal bloqueada pela PM. Em dado momento, arengou, do carro de som: "Não adianta ficar na praça. O cara que manda está lá em cima." A reação dos amotinados, registrada pela imprensa, foi a de aplaudir e gritar: "Vamos lá, vamos lá." O delegado supervisor do Garra, um dos três grupos de elite da Polícia Civil dos quais se esperava que contivessem a multidão, Oswaldo Nico Gonçalves, advertiu os políticos e os sindicalistas para "não inflamarem o discurso" - mas inflamar os ânimos era exatamente o que pretendiam. Muito se falou, a propósito, do presumível "erro de planejamento" da cúpula da Secretaria da Segurança, que acionou a Polícia Civil e a Militar contra a manifestação.
"Não se manda o amigo do amotinado ajudar a Tropa de Choque a sufocar a rebelião", critica o coronel da reserva Francisco Profício, que comandou a PM nos anos 1990. Mas a questão de fundo não é a tática e, sim, a política. Na esteira de uma reivindicação salarial em princípio pertinente - a Polícia Civil paulista é notoriamente mal paga -, fabricaram-se as condições para um incidente de impacto que deixaria na berlinda o governador tucano, provável candidato à sucessão presidencial de 2010 - e, por tabela, o seu candidato a prefeito de São Paulo. E os cabeças-quentes da corporação só faltaram imitar os seus colegas alagoanos rebelados que apareciam na televisão brandindo armas e com os rostos cobertos, numa réplica dos bandos criminosos que deveriam reprimir.
Não é trivial, assinale-se, lidar com o desafio do que os estudiosos do setor denominam "greve armada!" (ou com o da sindicalização das polícias). Mas é certo também que o governo do Estado não poderia ter deixado as coisas chegarem ao ponto a que chegaram, facilitando a vida dos aproveitadores políticos de prontidão. Agora, consumados os fatos, os agressores terão de ser identificados e punidos nos termos da lei que disciplina a conduta do funcionalismo e do Código Penal. Mas isso não bastará. Está de pé, mais do que nunca, o problema do convívio profissional das duas polícias. E, vai sem dizer, o imperativo de apagar o estopim da crise. Resta saber se o Palácio dos Bandeirantes terá a necessária lucidez para tanto.