Não tem sido fácil a vivência de instituições igualitárias num Brasil hierarquizado, avesso a limites e baseado num estilo de vida aristocrático, feito mais de pessoas graúdas e miúdas, do que de respeito pelo mundo público. O direito, o comércio, o trânsito, as atividades esportivas e a política abertamente competitiva também têm se ajustado à presença incômoda da igualdade como um valor coercitivo num país dominado pela presença abusiva do “você sabe com quem está falando?”.
A competição eleitoral trás à tona um conjunto de traços reveladores do hierárquico, do relacional e do íntimo. A reta final do embate coage a deixar de lado o enfoque confortável do falar em tese, obrigando a enfrentar o outro que passa de candidato em paralelo a adversário e inimigo eventualmente cruel, truculento e desonesto. As regras da disputa são claras, mas alguns jamais as internalizaram e honraram. Atitude normal numa sociedade na qual os seguidores das leis são até hoje vistos como “babacas” e “otários”.
Os exemplos dos poderosos são consistentes com a ultrapassagem das leis, com o rompimento da etiqueta, com o desdenhar dos prazos e horários, com a proteção dos amigos e correligionários. Com o legítimo direito de transgredir a norma que seria feita somente para o indivíduo comum, logo inferior.
Como, então, pretender que numa disputa do poder os candidatos sejam éticos se eles se preparam justamente para ocupar os cargos que, pelo nosso molde aristocrático, os isentam de cumprir as leis? Como evitar que as práticas relacionais e hierárquicas entrem na campanha, se a verticalidade cultural que nos ordena jamais foi problematizada ou discutida? Como evitar que os programas apareçam na forma de promessas que, sendo grandiosas e inexeqüíveis, são como utópicas e carnavalescas? Se os outros não fizeram, como é que vocês vão fazer? Para bem votar neste segundo turno, pense nessas coisas.
Por incrível que pareça estamos aprendendo, exatamente como ocorreu no futebol, a distinguir as regras dos jogadores; e o jogo do desejo imperioso de vencer. Estamos também descobrindo que não cabe chamar para a partida dimensões que nada têm a ver com o futebol, como se o jogador é casado, gay, adúltero ou milionário. Vale a sua dedicação ao papel. No campo, como cargo, o que interessa é muito mais o como se faz. A hierarquia, com seu estilo relacional — sou filho de Fulano, apoiado pelo governador e pelo presidente —, fala muito mais do que fazer do que de como fazer. A aristocracia sempre foi um regime de personalidades e virtudes inerentes, dadas pela divina hereditariedade.
Nela, o que conta é o porquê da relação e não o como do desempenho.
Nela, vale muito mais o modo tradicional de fazer do que as soluções originais e corajosas para os velhos problemas. Um barão do café não rompia com a lealdade devida a seus amigos e seguidores.
A sua casa grande vinha sempre em primeiro lugar. Fazendeiro, ele tomava medidas para defendêla, mesmo que elas conduzissem à destruição do sistema econômico no qual estava inserida. Na política, isso é equivalente a ganhar a qualquer preço, mesmo que o custo seja a destruição do sistema políticoeleitoral. A ousadia descarada da candidata que usa a desonestidade contra o seu adversário e depois se sente ofendida porque foi mal interpretada pela imprensa e pelas pessoas de bem, lembra o célebre menino da tradição judaica que assassinou seus pais e depois pediu clemência aos jurados por ser um pobre órfão! Temos visto reiteradamente esse comportamento no Brasil atual. Ele tem a marca de Caim daqueles que praticavam a política da intolerância para com seus adversários, mas que, no poder e ali recebendo a dura educação constitutiva de um amaldiçoado liberalismo, pois, além dos poderes constituídos, há a liberdade da imprensa e a igualdade que começa a aparecer como um valor, são obrigados a ver o outro lado e, mais que isso, a enxergar o “outro” (os que têm visões alternativas de como governar o Brasil), não como candidatos ao fuzilamento, ou à expulsão da vida pública, mas como cidadãos-adversários.
Como jogadores, que, obedecendo às mesmas regras e não misturando os fins e os meios, têm, não só o direito à disputa, mas até mesmo a ganhar o jogo. Numa competição, e, por isso , os antidemocratas odeiam tanto as eleições burguesas, é o adversário quem legitima o vencedor. Ademais, o vencedor de hoje é o perdedor de amanhã. A modernidade e o diabólico mercado roubaram da vida coletiva as certezas fundadas numa harmonia absoluta, em que alguma versão do humano se projetava em todo o Universo.
As oscilações entre o ganhar e o perder, tão próximas da vida e da morte, obrigam a honrar (e aperfeiçoar, é claro) as regras do jogo, porque nele não há nada que seja essencial, natural ou divino. Nós somos o que queremos ser. A porta do cinismo mais descarado está tão aberta para nós quanto a da mais bela honestidade.
Não é vergonha perder um jogo de futebol. A disputa é um risco.
Mas dizer, como ainda se acredita no Brasil, que a única vergonha é perder uma eleição, é ser conivente com o poder pelo poder. Esse poder que destrói o outro, impede mudanças e bloqueia os aprendizados dentro de cargos públicos de liderança as quais, como estamos começando a perceber, são fundamentais para uma existência igualitária.
Achar que vergonha é perder uma eleição, é ser conivente com o poder pelo poder
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