Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 25, 2008

Cárcere de Santo André – os relatos do terror

As tintas do inferno

O depoimento de Nayara e o relato de um dos rapazes que foram reféns de Lindemberg, obtido com exclusividade por VEJA, revelam o terror do cárcere de Santo André. O assassino disse que queria ver a ex-namorada sofrer – e já a havia ameaçado quatro vezes


Adriana Dias Lopes, Fábio Portela e Kalleo Coura

Rivaldo Gomes/Folha Imagem
O RELATO DO HORROR
Nayara Rodrigues da Silva, sobrevivente da tragédia de Santo André, contou à polícia que Lindemberg colocou um revólver na sua cabeça e a esbofeteou no período em que ela esteve no cativeiro


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Nesta reportagem

Quadro: Os principais erros do Gate

O inferno teve endereço fixo durante cinco dias, e um endereço, por ironia, abundante em referências religiosas: Rua dos Dominicanos, Conjunto Habitacional Santo André, prédio 24, Santo André, São Paulo. A brutalidade do mais longo caso de cárcere privado já registrado no estado de São Paulo mesmerizou o país, mas o que as câmeras de TV puderam registrar nem de longe a revelou em toda a sua crueza. As tintas do inferno na Rua dos Dominicanos ganharam tons muito, mas muito mais fortes com o depoimento à polícia da estudante Nayara Rodrigues da Silva e um relato obtido com exclusividade por VEJA. A reportagem da revista conversou com um dos rapazes tomados como reféns no primeiro dia do cativeiro. Da soma de sua descrição com o testemunho de Nayara emerge um roteiro espantoso. Ao longo das mais de 100 horas que durou o crime, Lindemberg Fernandes, o algoz de Nayara e de Eloá Pimentel, a ex-namorada que ele matou a tiros, teve picos de fúria e desespero. Bradou seu sofrimento, declarou aos gritos a vontade de ver Eloá sentir "pelo menos um terço" da dor que ele dizia estar sentindo, distribuiu coronhadas na cabeça das vítimas, esbofeteou-as, torturou-as com promessas de liberdade jamais cumpridas e, em diversas ocasiões, desferiu socos e pontapés no corpo, na cabeça e no rosto da ex-namorada. No primeiro dia de cativeiro, Eloá chegou a tentar arrancar a arma das mãos do criminoso. No quarto dia, já cansada e desesperada, pediu a ele para ser morta. No quinto, foi alvejada com um tiro na cabeça e outro no púbis. Lindemberg realizou o desejo professado: ele fez Eloá sofrer horrivelmente antes de morrer.

A tragédia, se não podia ser prevista, não chegou a ser uma completa surpresa para os que gravitavam ao redor dos seus protagonistas. Segundo a mãe de Nayara, Andréia Araújo, Lindemberg, de 22 anos, já havia ameaçado Eloá Pimentel, de 15, ao menos quatro vezes desde o mês passado, quando eles terminaram o namoro de três anos. Numa das ocasiões, ele chegou a bater na adolescente ao encontrá-la em um ponto de ônibus. Em outra, declarou que, caso a visse com outro homem, "arrebentaria" os dois. Foi Nayara quem contou os episódios à mãe. Há algumas semanas, Andréia teve de buscar a filha e Eloá no colégio, depois que Nayara lhe telefonou dizendo que "Liso" (como Lindemberg era chamado) fora até lá e que elas estavam com medo. Andréia pegou as meninas e, de moto, Lindemberg seguiu o carro por vários minutos. Dias antes, ele havia ido ao colégio e dado cavalos-de-pau diante da entrada. A mãe de Nayara disse a VEJA que chegou a aconselhar o pai de Eloá, o foragido da Justiça Everaldo Pereira dos Santos (veja quadro), a fazer um boletim de ocorrência contra Lindemberg por agressão à sua filha. Segundo Andréia, Santos respondeu: "Já conversei com o Liso. Isso não vai acontecer mais".


Reprodução Futura Press
SEMPRE JUNTAS
Nayara e Eloá conheceram-se neste ano, no colégio. Em pouco tempo, tornaram-se grandes amigas

Aconteceu. Na segunda-feira 13, Lindemberg entrou na casa da ex-namorada já de arma em punho, um revólver calibre 32. Encontrou Eloá e Nayara na cozinha. Mostrou-lhes a arma engatilhada e levou-as a um dos quartos. Lá, ao computador, estavam Iago Vilera, namorado de Nayara, e Vitor Lopes, colega de classe das meninas. Lindemberg desferiu uma coronhada na cabeça de cada um. Em seguida, passou a gritar que a sua vida havia terminado no dia 11 de setembro, quando, por ciúme, ele acabou o namoro com Eloá. Gritava que amava a menina, mas que não queria reatar o romance, apenas fazê-la sofrer uma parte do que ele estava sofrendo. Em certo momento, Eloá começou a chorar. Nesse instante, Lindemberg apontou a arma para a cabeça de Nayara e disse à ex-namorada que, se o choro continuasse, sua amiga morreria. Eloá se calou.

Mais tarde, Lindemberg ordenou que Iago entrasse na página de Eloá no Orkut. Ficou nervoso quando viu um recado deixado por alguém que se assinava "Gugu" e se enfureceu ao achar no celular de Eloá uma mensagem enviada por Felipe – um menino que ela havia conhecido em uma festa. Foi aí que teve início a primeira das muitas explosões do criminoso. Ele puxou a ex-namorada pelos cabelos, jogou-a no chão e começou a desferir pontapés em seu corpo. No fim da tarde, o irmão de Eloá, Douglas, chegou próximo à porta do apartamento. Lindemberg mandou que se afastasse. Douglas obedeceu, e a família tomou conhecimento do que se passava. Às 18 horas, Lindemberg deu mostras de estar arrependido e chegou a se desculpar com o grupo. Foi quando o pai de Eloá telefonou para o apartamento e informou que a polícia já havia sido chamada. Nesse instante, o criminoso se transformou e disse: "Agora é que o terror vai começar".

Foi depois disso que Eloá tentou tomar a arma de Lindemberg. Ele a empurrou com violência e, como represália, apontou o revólver na direção de um dos amigos de Eloá, ameaçando matá-lo. Por volta das 22 horas, depois de iniciar as negociações com o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), Lindemberg decidiu libertar Vitor, que havia desmaiado. Em seguida, foi até a janela e disparou um tiro na direção dos policiais que cercavam o prédio. Fez isso e riu. Chegou a dar entrevistas por telefone e, ao observar da janela o cerco montado pela polícia e o circo armado pelos jornalistas, dizia: "Sou o príncipe do gueto, eu sou o cara". Ainda na segunda-feira, decidiu liberar também Iago. Daquele momento em diante, permaneceu a sós com Eloá e Nayara.

Nos dias que se seguiram, Lindemberg tentou estabelecer uma rotina de normalidade no cativeiro. Fazia questão de que todos fizessem as refeições juntos e controlava os horários de dormir e de tomar banho. Na terça-feira, decidiu libertar Nayara, mas a menina ficou pouco mais de 24 horas livre. Na quinta, Lindemberg exigiu que ela voltasse para os arredores do prédio, a fim de ajudar nas negociações para a libertação de Eloá. Em uma atitude inexplicável sob qualquer ponto de vista, o Gate concordou. Nayara, uma adolescente de 15 anos, foi colocada para negociar com um rapaz desequilibrado, instável e armado – o que contraria não só a razão, mas também o Estatuto da Criança e do Adolescente, que proíbe colocar menores em risco de vida. Lindemberg enganou Nayara. Pediu que ela fosse até a porta do apartamento prometendo que iria se entregar e a trancafiou novamente. Neste mesmo dia, horas mais tarde, a estudante pediu para ter uma conversa com ele. Os dois foram para o banheiro e Lindemberg disse que, após sua liberação, Eloá havia se descontrolado várias vezes. Por esse motivo, ele quis recuperá-la como refém. Confessou ainda que sentira saudade dela. Abraçaram-se, a pedido da menina, de maneira "fraternal", segundo Nayara.

Naquela noite, quando os três assistiam à televisão, Eloá teve um rompante de desespero. "Não agüento mais ficar aqui. Me mate, me mate", gritou. A menina dizia que não suportava o sofrimento das pessoas que estavam do lado de fora e passou a quebrar objetos na sala. Lindemberg agarrou Nayara pelo pescoço e disse a Eloá que, caso ela não se acalmasse, ele mataria a "Barbie", apelido de Nayara na escola. Para mostrar sua disposição, estapeou Nayara duas vezes. Quando Eloá se acalmou, Lindemberg e Nayara fizeram-lhe carinhos até que ela dormisse. Nayara e Lindemberg então foram para o quarto dos pais de Eloá, onde ela adormeceu.


Rivaldo Gomes/Folha Imagem
A CAMINHO DO PRÓPRIO CÁRCERE
Lindemberg, no momento em que foi rendido, e depois, em imagem divulgada pela TV, já na prisão

Na sexta-feira pela manhã, Lindemberg discutiu mais uma vez com Eloá. Disse que Nayara era a culpada pelo rompimento dos dois, por "envenenar" Eloá contra ele. Pouco depois, esqueceu-se do assunto e foi preparar o café-da-manhã. De acordo com Nayara, às 16 horas, sem motivo aparente, o rapaz atirou contra a parede, mas nenhum negociador telefonou para saber a razão do disparo. O Gate nega. Disse que o tiro foi dado mais cedo, por volta das 13 horas, e que houve contato telefônico para confirmar a integridade das reféns. Lindemberg decidiu exigir garantias de vida para se entregar. Pouco antes das 18 horas, teve uma conversa tensa com o negociador do Gate, o capitão Adriano Giovaninni. "Muita gente aí fora vai pagar por isso. Muita gente aí fora vai sofrer, vai chorar. Diz para a população que está chegando o fim", disse. Durante o diálogo, o capitão sussurrou para o promotor ao seu lado: "É conversa de suicida". Dentro do apartamento, depois que desligou o telefone, Lindemberg empurrou em direção à porta da sala a mesa de jantar que retardaria a entrada do Gate no cativeiro, selando o destino de Eloá.

Criminosos passionais, como Lindemberg, são os mais difíceis de lidar numa situação como essa, concordam especialistas. Isso porque eles costumam misturar três características explosivas: insegurança, instabilidade e impulsividade. "Em qualquer outro tipo de negociação, há uma moeda de troca: liberdade ou dinheiro, por exemplo", diz o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, coordenador no Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. "No caso do criminoso passional que tem em seu poder o objeto da sua paixão, essa moeda não existe: o que ele mais quer já está com ele." O fato de Lindemberg ser o tipo mais difícil de lidar não explica os erros que o Gate já havia acumulado àquela altura, como a devolução de Nayara. Mas o comportamento desastrado do grupo atingiu o paroxismo quando uma equipe de cinco policiais que estava no apartamento vizinho ao de Eloá resolveu invadir o cativeiro. A ação, segundo a polícia, foi decidida depois de a equipe ouvir um estampido que, inicialmente, o Gate afirmou ser um tiro e que agora seu comandante, o coronel Eduardo Félix, já classifica vagamente como "um estampido". Os policiais explodiram a porta sem levar em conta a possibilidade de haver uma barricada e perderam catorze preciosos segundos obstruídos por uma prosaica mesa de jantar. Foi nesse intervalo que Lindemberg descarregou sua arma, matou Eloá e feriu Nayara. Se houve tiro antes ou depois da invasão, pouco importa. A ação fracassou.

O Gate, um regimento especializado em situações de risco, é conhecido por sua alta taxa de sucesso. Nos últimos dez anos, atuou em 119 casos semelhantes aos de Santo André, libertou 344 reféns e perdeu apenas dois, incluindo Eloá. São profissionais, sim, e competentes, como mostram os números até agora. Ocorre que, no ramo em que o Gate atua, o de salvar vidas, números impressionantes de pouco adiantam. A cada nova missão, parte-se do zero. E um único fracasso pode apagar os sucessos. Na Rua dos Dominicanos, em Santo André, o Gate também teve seu inferno com a morte de uma menina de 15 anos. Apenas 15 anos.

Com reportagem de Naiara Magalhães, Anna Paula Buchalla e Laura Diniz

Pai de Eloá atuou na "gangue fardada"


Rivaldo Gomes/Folha Imagem
DEZESSETE ANOS FORAGIDO
Everaldo, que passou mal durante o cárcere da filha, foi reconhecido ao aparecer na TV

O pai de Eloá, o ex-policial militar Everaldo Pereira dos Santos, não é apenas um foragido da Justiça. Quando, nos anos 90, a "gangue fardada" – organização criminosa formada por policiais civis e militares de Alagoas – aterrorizava o estado, ele era o "Cabo Everaldo", um de seus mais temidos membros. Especializada em crimes de extermínio, a gangue tinha uma vasta área de atuação, que incluía assaltos a banco, roubos, tráfico de drogas e desmanche de carros. Seu chefe era o então coronel Manoel Cavalcante, hoje preso. Everaldo era seu braço-direito. Dos mais de 100 homicídios atribuídos à quadrilha, Everaldo está formalmente envolvido em quatro. É apontado, porém, como autor de pelo menos outros três assassinatos, incluindo o de sua ex-mulher, Marta Lúcia Vieira, com quem vivia antes de se casar com a mãe de Eloá. "Pelo status dele na organização, é possível que seja responsável por vários outros crimes", diz o promotor Luiz Vasconcelos, que investigou a atuação da gangue. Entre os homicídios atribuídos ao pai de Eloá estão o do delegado Ricardo Lessa, irmão do ex-governador de Alagoas Ronaldo Lessa, e o de seu motorista, em 1991. Por causa desse episódio, ele decidiu fugir – primeiro para Mato Grosso, depois para São Paulo, aonde chegou em 1994. Revelado pela tragédia que mataria sua filha, Everaldo diz que fugiu porque é "um arquivo vivo" e teme ser morto. Encontra-se desaparecido – e não foi ao enterro nem ao velório de Eloá.

Leonardo Coutinho, de Maceió

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