O teste antidoping que puniu Rodrigo Pessoa na Olimpíada
abre a hipótese do tratamento cruel: substância detectada
é usada também para "queimar" a perna do cavalo
e ampliar seu salto
Carlos Giffoni e Ronaldo França
Fotos Caren Firouz/Reuters e Fadi Al-Assaad/Reuters |
POMADA E SUSPENSÃO |
Qualquer pessoa que veja uma competição de hipismo, mesmo que não entenda do esporte, perceberá o laço emocional entre os cavaleiros e suas montarias, manifestado através de tapinhas, palavras carinhosas e até abraço nos cavalos, campeões ou não. Essa ligação, no entanto, não exime os humanos dos habituais impulsos de competição, que, levados ao exagero, podem se traduzir em crueldade. O mundo hípico está convulsionado em torno do que pode ou não ser feito com os cavalos desde que um de seus mais conhecidos representantes, Rodrigo Pessoa, foi punido. Convocado para ser uma das estrelas da competição de hipismo em São Paulo organizada por Álvaro de Miranda Neto, o Doda, e sua jovem e milionária mulher, Athina Onassis, Pessoa, o mais premiado brasileiro nesse esporte, nem chegou a montar. O mais bem colocado da delegação de hipismo do Brasil na Olimpíada de Pequim, com um quinto lugar na prova individual, ele perdeu a posição e o direito de competir por quatro meses e meio quando seu cavalo Rufus foi pego no exame antidoping. Aqui, entrou com pedido de liminar contra a decisão da Federação Eqüestre Internacional (Fei) e foi atendido na Justiça carioca; mas, quando a entidade de hipismo ameaçou puni-lo com mais tempo de suspensão, desistiu da contestação. O antidoping eqüino detectou a presença de nonivamida, substância derivada da pimenta e presente em pomadas e cremes antiinflamatórios. Usada em grande quantidade, ela provoca sensação de queimadura e o animal faz de tudo para evitar o obstáculo (veja o quadro acima). Foi para coibir essa crueldade que a Fei incluiu a nonivamida e sua gêmea, a capsaicina, na lista de substâncias proibidas. A punição de Pessoa e de outros quatro cavaleiros em Pequim não significa que eles pratiquem maus-tratos – teoricamente, a substância poderia ter sido usada apenas em pequena quantidade, o que seria ilícito, mas não cruel. De qualquer maneira, o assunto acirra as paixões já naturalmente extremas no mundo hípico. As entidades que integram a Federação Paulista de Hipismo realizaram no dia 16 a primeira de uma série de reuniões para debater o que chamaram de "práticas antidesportivas em competições de salto".
Único esporte em que homens e mulheres, independentemente de idade e posição social (apesar da origem aristocrática dessa atividade), disputam em igualdade de condições, o hipismo propicia laços muito especiais entre cavalo e cavaleiro. "O cavalo é um atleta, da mesma forma que o cavaleiro. Os dois formam um conjunto. Trocam sentimentos e um percebe quando o outro não está bem", diz Thomaz Montello, veterinário da Fei. Mesmo assim, o costume de provocar dor para ampliar o salto é antigo e disseminado, tendo começado, no passado, com a colocação de varas pesadas antes dos obstáculos, onde o cavalo batia e se machucava até aprender a saltar mais longe. Com a maior rigidez dos exames pré-competições, que passaram a vistoriar as canelas do animal em busca de ferimentos e cicatrizes, o método foi se sofisticando até chegar à hipersensibilização com pomadas. O primeiro a protestar no Brasil contra a crueldade foi o empresário e cavaleiro Carlos Gerdau Johannpeter. "A tristeza é haver uma grande tolerância com essas práticas criminosas e também o fato de estarmos educando mal não só nossos jovens animais, como nossos jovens cavaleiros", escreveu em setembro num site de aficionados. A própria ação concentrada da Fei contra a nonivamida e a capsaicina na Olimpíada é indicação da preocupação cada vez maior com o método. Quando os cavalos chegaram para as provas olímpicas, realizadas em Hong Kong, os organizadores ofereceram um teste antidoping – o exame, porém, não incluía o mecanismo de detecção das duas substâncias. Os cavaleiros aceitaram, os cavalos passaram e todos se tranqüilizaram. No dia da prova, de surpresa, houve o segundo teste, desta vez para nonivamida e capsaicina. De quinze cavalos, cinco acusaram os componentes, uma altíssima proporção. "Pomadas contendo essas substâncias são muito usadas na região lombar, nos tendões e onde houver contusão. Provavelmente, o pessoal utilizou sem imaginar que haveria problema", diz Thomas Wolff, diretor veterinário da Confederação Brasileira de Hipismo, que estava em Pequim.
Kin Cheung/AP |
FORA DA PISTA |
Além de Pessoa, foram flagrados no antidoping da Olimpíada outro brasileiro, Bernardo Alves, o alemão Christian Ahlmann, o irlandês Denis Lynch e o norueguês Tony Andre Hansen, este o mais severamente punido: perdeu uma medalha de bronze conquistada em prova de equipe. O exame, de urina, não indica nem onde nem em que quantidade a substância foi utilizada. Rodrigo Pessoa, inconformado, protesta. "Sempre usei pomadas do gênero e vou continuar usando. Se você acorda com dor de cabeça, toma uma aspirina. Essas substâncias funcionam do mesmo jeito no cavalo. Não são para melhorar seu desempenho. São para deixá-lo bem, no seu estado normal", diz. Bernardo Alves, suspenso até 3 de dezembro, concorda: "Trata-se de exagero e má-fé. Não há uma relação clara das substâncias proibidas. Na minha equipe, por exemplo, meu cavalo gostava de mastigar ataduras; então tínhamos o costume de aplicar um spray com gosto forte para impedir isso. Pois descobrimos que esse spray contém capsaicina". Pessoa promete reagir e ir "à luta pela mudança das regras do antidoping porque, se continuar assim, as restrições vão acabar com o hipismo". O veterinário Wolff esclarece que, de fato, "as pomadas são vendidas à vontade, sem necessidade de receita". Mas acrescenta: "As duas substâncias estão, sim, na lista do doping. Ninguém me perguntou se poderia usar. Se alguém tivesse perguntado, a resposta seria não".