Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 18, 2008

Compra de terras por estrangeiros e soberania

É só conversa de ideólogo

Não faz sentido o argumento de que a compra de terras por
estrangeiros representa uma ameaça à soberania do Brasil


Diogo Schelp

The Art Archive/Corbis/Latin Stock
"DELEGAÇÃO DE AUTORIDADE"
O rei Luís XVI, da França, dá instruções ao conde de La Pérouse sobre viagem ao Oceano Índico. O rei delegou ao aventureiro a tarefa de fazer acordos comerciais, uma das atribuições do poder soberano

Certas palavras, apesar do significado um tanto vago, ganham força na boca dos políticos. Soberania é uma delas. O termo tem sido evocado como argumento para aumentar as restrições ao direito de estrangeiros de comprar terras no Brasil. Nos últimos quatro anos, o investimento externo no mercado imobiliário brasileiro cresceu 347%. Segundo um levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há 4 milhões de hectares de terras na mão de estrangeiros (5,5 milhões, se forem consideradas as propriedades sem registro no órgão). O que, na calculadora, representa apenas 0,47% da área total do país, aos olhos de uma parcela do governo petista, é uma verdadeira invasão do território nacional. Tanto que o Palácio do Planalto estuda enviar um projeto de lei ao Congresso, para impor mais limites ao avanço do capital internacional sobre propriedades rurais no Brasil. "Isso não é xenofobia, é soberania", disse recentemente o presidente do Incra, Rolf Hackbart. "Essas terras são patrimônio do país." Enquanto o projeto de lei não sai, Hackbart aguarda com ansiedade a aprovação, pelo presidente Lula, de um parecer da Advocacia-Geral da União que estende a empresas nacionais com capital externo os mesmos limites já existentes para cidadãos e companhias estrangeiras.

A lei que rege a participação estrangeira em propriedades rurais é de 1971 e foi feita no espírito protecionista do regime militar. A regra, válida até hoje, estabelece que cidadãos de outros países podem ser donos de, no máximo, 5 000 hectares de terras. Dependendo do tamanho do município onde se encontra a propriedade, o limite pode ser ainda menor. Para empresas, a área não pode exceder 10 000 hectares. "A lei brasileira facilita a aplicação de capital externo no mercado financeiro, mas dificulta na agropecuária", diz Leôncio Britto, da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária. Seria ainda mais difícil se, em 1995, uma emenda constitucional não tivesse mudado a definição de empresa brasileira, passando a permitir que, no conceito, coubessem aquelas controladas por capital estrangeiro. Em algumas regiões, o agronegócio explodiu graças a essa nova figura jurídica. No oeste baiano, por exemplo, 20% da área agrícola é cultivada por grupos estrangeiros. "O interesse no exterior por terras brasileiras cresceu ainda mais com o recente aumento do preço dos alimentos", diz o especialista em direito agrário Márcio Mattos, de São Paulo. Mas não é no oeste da Bahia, ou em outras regiões agrícolas, que reside a preocupação dos que vêem no avanço dos proprietários estrangeiros de terra uma ameaça à soberania nacional. A Amazônia é que é o problema. Em junho deste ano, o empresário sueco Johan Eliasch, dono de mais de 120 000 hectares no Amazonas, foi acusado de exploração indevida e multado em 381 milhões de reais. O episódio despertou os velhos temores de que o Brasil possa perder o controle sobre a floresta. Volta e meia circulam boatos de que nações ricas têm planos de internacionalizar a Amazônia. Por que não acreditar que uma forma de isso acontecer seria por meio da compra, fazenda a fazenda, de toda a região? Ou, mesmo não havendo uma conspiração organizada para tomá-la, como garantir que o estado brasileiro possa exercer sua soberania se os estrangeiros forem donos de grandes extensões do território?

A análise do conceito de soberania ajuda a responder a essas questões. Existe uma infinidade de interpretações para o termo – e já há até cientistas políticos que decretaram sua morte, por conta da integração política e econômica entre os países da Europa. Soberania, numa definição ligeira, é a autoridade exclusiva que uma entidade política (o rei ou o estado republicano) tem sobre determinado território. A soberania pode ser interna, quando exerce o controle sobre o que ocorre dentro de suas fronteiras, ou externa, quando se refere à relação igualitária com outras entidades soberanas (ou seja, outros estados). Esse é um dos pilares das relações internacionais: cada nação funciona como uma pessoa que não deve obediência a ninguém, a não ser aos contratos que assinou voluntariamente com seus iguais. A palavra "soberania" entrou para o vocabulário juntamente com o surgimento dos estados modernos, a partir do século XVI. A sociedade com poderes fragmentados que caracterizava a Idade Média européia unificava-se, na ocasião, em torno de monarquias fortes. O jurista francês Jean Bodin (1530-1596) foi o primeiro a discorrer sobre o termo, e o usou como forma de legitimar o poder absoluto do monarca. Em Os Seis Livros da República, de 1576, Bodin escreve que, acima do rei, só existiam a lei divina e a lei natural. Por esse motivo, ele detinha o poder – soberano – de fazer as leis, declarar a guerra, nomear os ocupantes dos principais cargos militares e administrativos, emitir moeda, criar impostos, anistiar os condenados e julgar em última instância. Em contrapartida, esperava-se do rei que se encarregasse apenas dos assuntos públicos, deixando as questões particulares aos indivíduos. O que incluía respeitar o direito de propriedade privada – uma novidade e tanto em relação ao feudalismo.

Yuri Kochetkov/Corbis/Latin Stock
EM TERRA ESTRANGEIRA
Soldados russos passam por cartaz de Putin, na Ossétia do Sul: distribuição de passaportes

A Revolução Francesa, no fim do século XVIII, mandou o rei para a guilhotina e consolidou a idéia de que a soberania emana do povo, não do monarca. Essa conceituação já havia sido elaborada por pensadores como o inglês Thomas Hobbes (1588-1679) e o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). "Todo ato de soberania, todo ato autêntico da vontade geral, une ou favorece igualmente a todos os cidadãos", escreveu Rousseau em 1762. A soberania popular, associada à idéia de nação, deveria ser exercida por um estado organizado, ao qual cabia, além de fazer tudo aquilo que Bodin prescrevia ao extinto rei absoluto, defender os direitos naturais do cidadão. A Constituição americana, escrita em 1787, seguiu o mesmo princípio, mas inovou ao distribuir as atribuições da soberania entre os estados que compõem o país. Por esse motivo, o modelo federativo dos Estados Unidos sempre foi considerado uma antítese da noção clássica de soberania. Até surgir a União Européia e os cientistas políticos começarem a falar em "soberania compartilhada". A União Européia é exatamente isso: um conjunto de países que compartilham boa parte de seus poderes soberanos com uma entidade política supranacional – com direito a representação na ONU e embaixada em Brasília.

Ao jogarem fora suas moedas nacionais e adotarem o euro, e aceitarem submeter-se a leis elaboradas por deputados de dezenas de nacionalidades diferentes, as nações da UE romperam com dois parâmetros da soberania moderna. O Brasil e seus vizinhos fizeram algo semelhante, ainda que em menor grau: os países-membros do Mercosul, por exemplo, só podem fechar acordos comerciais com outros países se todos os sócios do bloco concordarem. Trata-se da abdicação de um dos elementos da soberania externa – a liberdade para assinar tratados com outras nações.

A idéia de que os poderes soberanos pudessem ser delegados, no entanto, não era totalmente estranha ao precursor Jean Bodin. "O verdadeiro soberano permanece sempre imbuído de seu poder. Assim como um senhor feudal que entrega terras para outro mantém o seu domínio sobre elas, o governante que delega sua autoridade (...) tampouco perde os seus direitos de jurisdição", afirmou o francês em Os Seis Livros da República. O trecho lança luz sobre a polêmica da compra de terras no Brasil: o fato de um estrangeiro comprar um pedaço da Floresta Amazônica ou uma fazenda no cerrado não o exime de prestar obediência às leis locais. Pela lógica de Bodin, portanto, a soberania brasileira não estaria ameaçada. Mas não adiantemos o ponto.

A soberania é um conceito tão maleável e relativo que, recentemente, dois países a usaram como justificativa para posições completamente opostas. Em agosto deste ano, o Exército da Geórgia, no Cáucaso, atacou milícias separatistas dentro do seu território, em uma tentativa legítima de recuperar a soberania perdida. Em resposta, a Rússia invadiu o país, com o argumento de que exercia o seu direito – soberano – de proteger os cidadãos russos que residem na Ossétia do Sul, a região separatista em questão. Em que pesem os protestos, a comunidade internacional viu-se obrigada a aceitar o argumento, fazendo vistas grossas ao artifício usado nos últimos anos pelo ex-presidente (e agora primeiro-ministro) Vladimir Putin de distribuir passaportes russos entre os ossetas – uma evidente violação da soberania georgiana. Na retórica do governo russo para justificar a guerra está implícita a idéia de que a soberania popular se sobrepõe à soberania territorial. Ou seja, o estado russo teria o direito de usar a força para defender seu povo, onde quer que ele esteja. "Por essa lógica, o Exército brasileiro poderia entrar no Paraguai para proteger os brasiguaios, cujas fazendas estão sendo queimadas e saqueadas por sem-terra daquele país", diz o historiador Marco Antonio Villa, de São Paulo.

Em março deste ano, o governo da Colômbia fez algo parecido. Com a preocupação de defender seus cidadãos, flagelados há quarenta anos pelo narcoterrorismo, as forças colombianas atacaram um acampamento das Farc em território equatoriano, matando Raúl Reyes, o número 2 do grupo. No episódio, a Colômbia violou a soberania do Equador ao atacar o território do país vizinho. Mas o Equador também desrespeitou a soberania colombiana ao dar guarida a um grupo criminoso cujo objetivo é derrubar o governo de Bogotá. A troca de acusações que se seguiu entre os governos dos dois países culminou com a sugestão do chanceler colombiano de que a Organização dos Estados Americanos adotasse um novo conceito de soberania. "A soberania dos povos deve se sobrepor à dos territórios", disse o ex-chanceler Fernando Araújo. A semelhança com a retórica do governo russo está longe de colocar Putin e o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, no mesmo barco – inclusive porque o último não distribuiu passaportes colombianos entre equatorianos.

As fronteiras nacionais, antes grossas linhas riscadas sobre o mapa, hoje aparecem pontilhadas, permeáveis. À medida que as tradicionais divisões entre os países são borradas, a noção de soberania adquire outros contornos – seja por meio da globalização econômica, com suas empresas transnacionais e imigração em massa, da formação de blocos políticos e, não menos importante, pela necessidade de combater o terrorismo internacional e o crime organizado. Que ignoram solenemente as fronteiras territoriais.

Diante dessa miríade de mutações ao longo do tempo, qual o sentido de usar a defesa da soberania como pretexto para restringir o direito de estrangeiros de ter propriedades rurais, como quer o governo brasileiro? No passado, quando as guerras e as invasões de território eram feitas exclusivamente por terra, fazia sentido controlar a compra de fazendas próximas às fronteiras. Hoje, não. Quanto às outras limitações, entre elas a de estabelecer um limite para o tamanho das propriedades, sua origem é bem menos "geopolítica", como explicou a VEJA o economista americano Stanley Engerman, co-autor do livro Direitos Agrários, Etno-nacionalismo e Soberania na História: "Elas nasceram para garantir uma reserva de mercado. A restrição à compra de terras por estrangeiros era uma forma de evitar que o preço das fazendas subisse muito". Nos países desenvolvidos, as leis existentes são apenas um resquício de um passado em que essas preocupações tinham uma razão de ser.

Voltemos agora a Bodin. Como ele mesmo escreveu ao falar da "delegação de autoridade", o fato é que a propriedade privada, esteja ou não na mão de estrangeiros, não é uma ameaça à soberania de um país – desde que o estado seja capaz de fiscalizar e controlar o seu uso. Na Amazônia, onde não se consegue coibir o tráfico de drogas nem obrigar os brasileiros natos a cumprir as leis ambientais, o que existe é um caso de omissão total no exercício da soberania por parte do estado. Para mascarar a realidade, usa-se o fantasma, eivado de ideologia, da "ameaça estrangeira". "É mais fácil evocar a defesa da soberania, um termo com apelo popular que costuma ser associado ao sentimento de patriotismo, do que reconhecer a incompetência estatal para controlar o que acontece dentro do seu território", diz o paulista Fernando do Couto Henriques Júnior, doutor em direito internacional pela Universidade de São Paulo com uma tese sobre soberania. Enfim, é como tentar resolver o problema da Amazônia obrigando o senhor Rolf Hackbart a mudar o nome para Rodolfo Barba Espetada.

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