Moreira Salles compra acervo com 1 500 imagens
raras do país dos séculos XVI ao XIX
Marcelo Bortoloti
Roberto Setton |
Fernando Stickel |
UM HOMEM DISCRETO Erico Stickel, morto em 2004, foi dono do Abaporu. Era um grande colecionador, mas nem seus filhos sabiam do tesouro que ele reuniu |
O colecionador de arte Erico Stickel, falecido em 2004, era um homem reservado. Saía pouco de casa, não freqüentava vernissages e só exibia as preciosidades de sua coleção a amigos raros. Durante duas décadas, manteve em uma das paredes de sua residência, em São Paulo, o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral, hoje avaliado em 10 milhões de dólares e tido como a estrela do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires. Ao longo da vida, Stickel reuniu em casa 1 500 obras de arte, principalmente desenhos, aquarelas e gravuras, que retratam o Brasil desde o século XVI, em cartografia, até o século XIX, em registros do cotidiano. Todo esse acervo ficava num único quarto, isolado até da própria família. Apenas uma pequena parte, mais precisamente 10% dela, foi divulgada no livro Uma Pequena Biblioteca Particular (Imprensa Oficial/Edusp), que o colecionador publicou em 2004. Ele nem sequer fazia seguro das obras. Por isso, foi uma surpresa para os filhos quando, após sua morte, surgiu uma coleção variada e poderosa, com trabalhos de autores famosos como Johann Moritz Rugendas, Henry Chamberlain e o botânico alemão Carl Friedrich von Martius. É esse material que a família acaba de vender ao Instituto Moreira Salles, a um preço que não é revelado por nenhuma das partes, mas que o mercado estima ser próximo de 1,5 milhão de dólares.
Embora o acervo conte com nomes de peso, nas pesquisas em feiras e leilões de arte Stickel não buscava apenas assinaturas. Valorizava trabalhos que registrassem aspectos da vida brasileira, independentemente do autor. O resultado é um conjunto diversificado e original. A visão que se tem hoje do Brasil no século XIX, antes da invenção da fotografia, é bastante influenciada pelo olhar de franceses, como Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay, cujos trabalhos são mais conhecidos do grande público. Na coleção de Stickel, há também obras de ingleses, italianos, alemães, portugueses, belgas, holandeses, austríacos, irlandeses e russos. A variedade se dá também no espaço. Além do Rio de Janeiro, a capital mais pintada e posteriormente mais fotografada do país, há imagens de Recife, Salvador, Florianópolis, Porto Seguro, Ouro Preto, Mariana, Sorocaba e do interior de Goiás. "Erico Stickel tinha uma capacidade ímpar de prospecção de obras. Não cultuava os valores do mercado, era um intelectual e sabia discernir algo que fosse de fato relevante sob o ponto de vista histórico e cultural. Daí sua importância", diz a pesquisadora Ana Maria Belluzzo, autora do livro O Brasil dos Viajantes (Editora Objetiva).
Fotos Roberto Setton |
TRÊS MOMENTOS Paisagem de Ouro Preto, pelo botânico alemão Von Martius em sua expedição pelo interior do Brasil, em 1817; cena da Guerra do Paraguai, feita pelo italiano Edoardo de Martino no campo de batalha; e o mapa de 1552, a peça mais antiga da coleção, com a América do Sul habitada por canibais: preciosidades garimpadas por Stickel ao longo de quatro décadas |
A peça mais antiga do acervo é um curioso mapa feito pelo cartógrafo alemão Sebastian Münster, que mostra a América do Sul povoada por canibais. É datado de 1552, ou seja, pertence a um período de escassa iconografia, que se estende pelos 300 anos seguintes, mas do qual o colecionador conseguiu registros importantes – por exemplo, uma gravura de 1668 com navios holandeses no litoral de Recife, feita a partir de desenho de Frans Post. A coleção traz também obras produzidas por pessoas que foram testemunhas privilegiadas da história, como o italiano Edoardo de Martino, que presenciou a Guerra do Paraguai a bordo de um navio brasileiro. Ele deixou como legado diversos registros de batalha – uma espécie de fotojornalismo a lápis – cujos esboços originais são preciosos. Outro tesouro de Stickel são 78 desenhos originais feitos por Von Martius, que percorreu o interior do Brasil entre 1817 e 1820, viajando de barco e em lombo de burro. Ele catalogou 22 700 espécies de planta, publicadas na monumental obra Flora Brasiliensis, e também retratou algumas cidades que encontrou pelo caminho. O livro é ilustrado com litografias feitas por artistas europeus a partir de desenhos originais como os obtidos por Stickel, que são o registro feito pelo próprio Von Martius e acabam sendo mais vivos e ricos em detalhes do que as imagens publicadas no livro.
O caráter instantâneo destaca-se na coleção de Stickel, de uma forma geral. Boa parte das obras são desenhos e aquarelas produzidas em campo. Nesse sentido, o conjunto complementa e se afina com o acervo de fotografias do Instituto Moreira Salles, que tem a coleção de Marc Ferrez, composta de 6 000 imagens. "Os desenhos e pinturas mostram o Brasil até o século XIX. As fotos dão continuidade a esse registro daí em diante", diz o superintendente executivo do instituto, Antonio Fernando De Franceschi. A imagem principal que ilustra esta reportagem mostra justamente a confluência desses dois formatos. Trata-se de uma litografia colorida com aquarela e lápis de cor, feita a partir de uma imagem do Rio de Janeiro captada por daguerreótipo, provavelmente na metade do século XIX. O autor é o francês Eugène Cicéri, considerado um dos maiores litógrafos do período. Na época, embora já existisse a fotografia, sua transposição para o papel continuava sendo feita em gravura, que permitia a reprodução em tamanho maior e podia ser colorida a mão. É um trabalho que sintetiza o valor dessa coleção impressionante e reveladora de aspectos pouco conhecidos da paisagem, da história e da vida cotidiana do Brasil.