Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 16, 2008

Geórgia O que está em jogo no conflito com a Rússia

Uma guerra no fim da história

A Geórgia invadiu a Ossétia, que pediu ajuda à Rússia, que
invadiu a Geórgia. É assim mesmo no Cáucaso, há eras


Duda Teixeira

Sergei Grits/AP

O SOFRIMENTO DOS CIVIS
Casal de georgianos desespera-se em Gori, cidade bombardeada e ocupada por tropas russas

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O romancista americano William Faulkner escreveu que o passado nunca está morto. De fato, nem sequer é passado. Ele se referia a outro lugar e outra situação, mas a definição se aplica bem ao Cáucaso. Essa cadeia de montanhas nos extremos de dois continentes, a Europa e a Ásia, é o lar de uma variedade de povos que convivem aos trancos uns com os outros. Alguns de seus pequenos estados estão entre os mais longevos. A Armênia foi o primeiro país a adotar o cristianismo como religião oficial, em 314. A Geórgia, que tinha sido súdita do Império Romano, atingiu seu esplendor entre os séculos X e XIII. A profundidade das raízes nacionais pode ser aferida pela exclusividade do idioma georgiano, que não pertence a nenhum dos grandes troncos lingüísticos, como o indo-europeu, que inclui o português. O isolamento pode ser exemplificado por uma excentricidade: enquanto na maioria das línguas a palavra para mãe reflete o "mama" balbuciado pelo bebê, em georgiano é o pai que atende por "mama". Mãe é "deda".

Os ossetas, que falam uma língua aparentada ao persa e nunca formaram um reino poderoso, acreditam-se descendentes diretos dos alanos. Em parceria com os vândalos, esses nômades devastaram a Península Ibérica e o norte da África (daí o adjetivo "vândalo"). Os alanos que permaneceram no Cáucaso se alistaram nas hordas de Átila, o Huno. Em homenagem a tais ancestrais, a Ossétia do Norte quer ser chamada de Alânia. Todas essas populações têm em comum a submissão centenária a vizinhos grandalhões. Não é difícil entender por que esses povos ciosos de sua identidade vivem em contínua ebulição nacionalista. A região é um barril de pólvora. Desde o início dos anos 90, a Rússia luta para submeter os chechenos, um povo muçulmano vizinho à Geórgia. Depois de penar nas mãos de tártaros, persas e otomanos, a Geórgia foi incorporada ao Império Russo no início do século XIX. A Ossétia do Sul foi riscada do mapa como uma região autônoma em território georgiano por decisão de Josef Stalin. Um túnel construído sob uma montanha é sua única conexão com a Ossétia do Norte, na Rússia. São obscuras as razões do ditador para a criação de duas entidades de um mesmo povo em países diferentes. Stalin era georgiano, mas tinha bisavô osseta. O que não pegava bem, pois os russos consideram os georgianos uns bandidos e os georgianos vêem os ossetas como bárbaros semipagãos.

Dimitry Kostyukov/AFP

GUERRA À MODA DO SÉCULO PASSADO
Soldados russos nos arredores de Tskhinvali, capital da Ossétia do Sul. O corpo é de um soldado georgiano

Essa perambulação pela história tem por finalidade ajudar na compreensão dos acontecimentos recentes: a invasão russa que esmagou o pequeno exército da Geórgia. O estopim da crise foi o separatismo dos sul-ossetas, que a Geórgia não aceita. Um cessar-fogo precário existe desde 1992. A soldadesca russa também garante outro grotão separatista, a Abkházia, no sul da Geórgia. O presidente Mikhail Saakashvili elegeu-se prometendo restabelecer a soberania georgiana nessas regiões. Saakashvili, que estudou e morou nos Estados Unidos, quer transformar o país num exemplo de democracia e capitalismo moderno, numa região que nunca viu nada parecido. Também quer entrar para a Otan, a aliança militar do Ocidente. Na sexta-feira 8, ele perdeu a paciência e mandou seu minúsculo exército atacar a capital da Ossétia do Sul. A reação russa foi brutal. A curta guerra foi facilmente vencida pela Rússia, que ocupou várias cidades no interior da Geórgia. A explicação do presidente russo, Dimitri Medvedev, e do primeiro-ministro Vladimir Putin, que é quem realmente governa, é a obrigação moral de ajudar um povo amigo ameaçado. Não é tão simples, evidentemente.

Ao defender seus clientes separatistas, a Rússia mandou basicamente três mensagens ao mundo. A primeira é que o Kremlin, vitaminado pelo lucro da venda de gás natural e de petróleo, tem músculos e não hesita em usá-los para defender seus interesses estratégicos. A segunda é que a influência americana e européia nas áreas vizinhas à Rússia é vista como ameaça e pode levar à punição dos países que se aliarem ao Ocidente. A Ucrânia, que também quer entrar para a Otan, que se cuide. A terceira mensagem é que a Europa não vai se livrar com facilidade da dependência energética em relação à Rússia. O único oleoduto entre o Mar Cáspio e o Negro que não passa pela Rússia atravessa a Geórgia.

Que Putin preparou o cenário da guerra e Saakashvili caiu na armadilha está fora de dúvida. Nos últimos meses, a pretexto de manobras militares, a Rússia concentrou tropas na Ossétia do Norte. Nas últimas semanas, as milícias ossetas atacaram aldeias georgianas. Numa tentativa de contornar a crise, Saakashvili telefonou para Putin para lembrá-lo de que o Ocidente garantia a integridade territorial da Geórgia. Adepto da linguagem direta, o russo disse ao georgiano onde deveria enfiar as garantias ocidentais. No final, Saakashvili ficou mesmo sozinho. Quanto ao presidente americano, George W. Bush, o máximo de auxílio que deu à Geórgia, um de seus raros aliados na Guerra do Iraque, foi mandar alguns aviões de ajuda humanitária.

Irakli Gedenidze/AP

TERMINOU EM DESASTRE 
O presidente georgiano Saakashvili: decisão imprudente e trágica de atacar


A indiferença russa em relação ao que pensa a comunidade internacional ficou evidente nos dias que se seguiram ao cessar-fogo costurado pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, na quarta-feira passada. No texto do acordo, Moscou reconheceu a independência da Geórgia, mas não a unidade de seu território. "Os georgianos podem esquecer quaisquer negociações sobre a integridade territorial do país", avisou o chanceler russo, Sergei Lavrov. É a primeira vez que a Rússia invade um estado soberano desde o colapso da União Soviética. Apesar do que parece, não se trata de um recomeço da Guerra Fria. O conflito entre as duas superpotências era balizado por ideologias opostas. Isso não existe mais, ainda que a nostalgia pelo império soviético domine os corredores do Kremlin.

Como escreveu a americana Samantha Power, historiadora cotada para ser secretária de Estado caso Barack Obama vença as eleições, Tucídides (460 a.C.-404 a.C), o cronista da Guerra do Peloponeso, disse que os povos vão à guerra por "honra, temor e interesse". Putin parece ver o conflito no Cáucaso principalmente como uma questão de honra. Ou, na opinião de Samantha, como uma oportunidade para expurgar o sentimento de humilhação existente em Moscou. Depois do colapso do império soviético, a Rússia viu-se forçada a engolir o avanço da Otan em países da Europa Oriental que por décadas foram seus satélites. A independência do Kosovo foi a última afronta ao orgulho soviético. O fato de a Geórgia ser apoiada pelos Estados Unidos torna o ataque uma espécie de revanche à atitude ocidental nos Bálcãs. A derradeira mensagem parece ser "se vocês podem, eu também posso". É a lógica do Cáucaso.

 

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