Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 05, 2008

Vergonha nacional

Miguel Reale Júnior



O fato mais tocante de 2007 se deu na cidade paraense de Abaetetuba. Moça de 15 anos, acusada de tentar furtar um celular, foi encarcerada em cela com 20 homens. Sob a tutela do Estado, a menor foi estuprada por diversos presos em dependência cujas grades davam para a rua.

A violência em si já causa indignação. Mas o que mais assusta é a indiferença com que o fato foi legitimado pela delegada e pela juíza, que se arrimam em questiúnculas formais para justificar sua reprovável omissão. A delegada diz que era previsível a ocorrência da violência. Não podia ser diferente. Entra pelos olhos de qualquer pessoa de mediana inteligência quais seriam as conseqüências desse encarceramento. Ao se visualizar, como não poderia deixar de ser, a probabilidade do evento, descumpriu-se o dever de proteção das autoridades para evitar a desdita consabida.

Diz o delegado superior hierárquico da delegada ter sido a moça colocada com 20 detentos por não dispor a delegacia de outra cela. Assim, a punição provisória devia ser cumprida, apesar da evidente imposição de um cruento castigo extra, não previsto em lei, qual seja o de ser a presa violada diversas vezes nas dependências da polícia. A indiferença pela preservação da dignidade da acusada do "grave" crime de tentar furtar um celular é espantosa, sendo mais que um mero lavar as mãos diante do estupro anunciado, pois revela a frieza de alma de quem pouco se lixa para desgraça daquela que se encontrava sob seus cuidados. Presa em 21/10, solicitou-se sua transferência ao juízo apenas em 7/11, que não a deferiu.

O delegado diz que não poderia transferir a presa da cela onde estava sem ordem judicial. Na verdade, antes disso, a moça não deveria é ter sido introduzida nessa cela, de forma alguma.

Por outro lado, a juíza e os juízes que lhe prestaram solidariedade afirmam não poder a moça presa ser transferida de estabelecimento sem autorização da Corregedoria. A desculpa é esfarrapada. Descuidou-se, com a pretensa superioridade que por vezes vicia o exercício de cargos públicos, do dever primário de proteger a integridade de uma pobre mulher presa. Para tanto bastava um mínimo de bom senso e de sensibilidade.

Estabeleceu-se o jogo de empurra: o delegado não poderia ter enclausurado a moça nesse tipo de dependência, mas alega que, lá posta, não era possível sua transferência sem ordem judicial. A juíza diz, então, que não seria possível autorizar a transferência da cela, na qual jamais deveria ter entrado, sem ordem da Corregedoria.

A juíza e seus pares, que se fantasiaram de toga para pressionar a Corregedoria a favor da colega, revelam, com essa escusa risível, o mais gritante desconhecimento do nosso ordenamento jurídico, ao lado de inadmissível acomodação diante de uma realidade manifestamente revoltante. Inadmissível escusar-se o juiz do dever de agir com uma migalha de sabedoria, exigindo que lhe seja dada ordem expressa para ser justo. Mas, se o juiz procura justificar ter abdicado do seu dever de agir, como garante da integridade física e moral de uma moça de 15 anos presa em cela com 20 homens, é porque desconhece os mandamentos constantes da Constituição e da lei.

À espera da formal determinação da Corregedoria para transferir a menor de uma cela onde estava a ser estuprada, descumpriu-se o constante do artigo 5º, incisos XLVIII e XLIV, da Constituição, que rezam que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade, o sexo do apenado, bem como que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Se a Constituição nada vale, menos ainda valeu o dispositivo da Lei de Execução Penal que determina, no artigo 82 e em seu § 1.º, dever a mulher presa provisoriamente ou a condenada ser recolhida a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal, sendo competência do juiz, e não da Corregedoria, conforme edita o artigo 86, § 3º, da mesma lei, "definir o estabelecimento prisional adequado para abrigar o preso provisório".

Se não fosse alguns presos haverem denunciado aos membros do Conselho Tutelar o abjeto compartilhamento do corpo de uma jovem pelos colegas de cela, até hoje a moça estaria a servir de repasto sexual, sofrendo lesões corporais, como indicam os hematomas e as queimaduras por cigarro.

Deve-se a salvação da menor violentada à firme atuação da sociedade civil, por intermédio do Conselho Tutelar. De outra parte, a denúncia provocou a ida ao Pará de comissão externa da Câmara dos Deputados, sendo relatora a deputada Luiza Erundina, que concluiu ter havido "gravíssimo atentado contra os direitos humanos, cometido por agentes do Estado, contra uma jovem indefesa". Denuncia-se, no relatório da comissão externa, ter-se constatado negligência, omissão e conivência de membros da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Lamentavelmente, à perda da liberdade, nas cadeias públicas deste imenso país, se soma a perda da dignidade, pela tortura, pelo abuso sexual, pela contaminação por doenças de toda ordem, pela extorsão por agentes policiais.

O pior, todavia, está na indiferença que contamina alguns promotores e juízes, pois descumprem a Lei de Execução Penal e jamais se dignam sequer a visitar os estabelecimentos prisionais de sua comarca.

A estas três mulheres se deve a possibilidade de ser acionada a sensibilidade de muitos. A delegada e a juíza dão o exemplo do que não se pode repetir. O sacrifício vivido pela terceira mulher, a mocinha violada, vítima deste episódio, que retrata uma realidade nacional, pode gerar a boa vontade de não se limitar a reação à mera indignação, para se traduzir em atos de controle e de ação de todas as autoridades envolvidas na administração da Justiça Criminal. Tomara seja positivo, no decorrer de 2008, o sentimento de vergonha gerado em 2007 pelos acontecimentos de Abaetetuba.

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