O Quênia era um dos poucos países africanos que
fugiam à maldição das rivalidades tribais. Exploração
política e violência pós-eleitoral quebraram o mito
Thomaz Favaro
Thomas Mukoya/Reuters |
A lei do facão: explosão de fúria na periferia de Nairóbi provocou o terrível espetáculo de pobres matando pobres |
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Praticamente todos os artigos do manual africano de horrores entraram em ação no Quênia. O presidente, Mwai Kibaki, fraudou escandalosamente as eleições para garantir um segundo mandato (é a regra número 1 do líder político africano: uma vez no poder, jamais abandoná-lo). O líder da oposição, Raila Odinga, explorou as rivalidades tribais subjacentes à disputa política. Quenianos comuns entenderam o recado e foram em busca de revanche. Na véspera do Ano-Novo, e nos dias subseqüentes, seguiu-se o terrível espetáculo de pobres matando pobres. Nas favelas de Nairóbi, os facões foram desembainhados e o sangue correu. Houve linchamentos em massa, saques, depredações, estupros, mutilações e o brutal reavivamento das divisões tribais. No interior, a carnificina mais inominável: numa modesta igreja da Assembléia de Deus, cerca de cinqüenta pessoas que procuravam refúgio das agressões foram queimadas vivas. As vítimas na maioria eram quicuios, considerados automaticamente culpados pelo fato de pertencerem à etnia do presidente. Os agressores eram da tribo de Raila, os luos, e de outras minorias aliadas no ódio aos adversários étnicos (veja um mapa dos grupos principais ).
Comparado a vizinhos como Etiópia, Sudão, Uganda e Somália, consumidos por guerras civis em que milhões de vidas já foram tragadas, o Quênia é um país relativamente estável. Tem uma economia razoa-velmente próspera, também em termos relativos, e vinha crescendo 6% nos últimos quatro anos. É possível que, por pressão internacional, os líderes políticos dos dois lados mostrem alguma disposição à resolução negociada dos conflitos. Será praticamente um milagre se o número de vítimas ficar nos cerca de 400 mortos e 180 000 refugiados registrados na semana passada. Permanece, no entanto, o sentimento de frustração e de impotência que se repete a cada nova tragédia africana. Para entender um pouco mais por que isso ocorre, ajuda se olharmos o mapa da África como um processo em constante movimento em que as fronteiras nacionais são, na maioria, conceitos teóricos. Apesar das dimensões e das riquezas naturais prodigiosas, a África é pobre em terras cultiváveis: elas são 24% do total – contra, por exemplo, 70% no território brasileiro. Há milênios os povos africanos se deslocam movidos pelo impulso elementar de buscar melhores condições de vida. Muitas rivalidades tribais tiveram origem aí e sobreviveram a tudo: ao colonialismo, à criação de estados nacionais, a experimentos políticos que foram do socialismo à africana até as ditaduras mais personalistas.
Simon Maina/AFP |
Mwai Kibaki durante a cerimônia de posse feita às pressas: fraude nas urnas e privilégios para a tribo |
O fim de ano sangrento no Quênia foi resultado de tensões tribais ancestrais manipuladas por políticos espertos. O presidente Kibaki, que representou um sopro de esperança na sua primeira eleição, fez o habitual: cumulou de privilégios os seus. Evidentemente, nem todos os quicuios se beneficiaram, mas os que o fizeram eram, na maioria, da tribo. Para garantir a vitória de Kibaki na eleição do dia 27 de dezembro, foram computados mais votos que eleitores nas regiões dominadas por quicuios. Dezenas de milhares de nomes luos, etnia do adversário Raila Odinga, foram apagados dos registros eleitorais (facilidade extra: os sobrenomes dos luos começam por vogais). Já houve conflitos cruentos da mesma natureza nos últimos anos, mas, desde que se tornou independente do domínio britânico (mantendo tradições como os juízes togados e emperucados), em 1963, o Quênia conseguiu abafar os conflitos tribais ou pela pura imposição do poder quicuio, o grupo tradicionalmente mais forte, ou pela divisão das benesses estatais entre os chefes de diferentes clãs tribais. O presidente Kibaki, que tomou posse quase clandestinamente, rompeu a aliança que tinha feito para a primeira eleição, em 2002, com o oposicionista Raila Odinga e radicalizou nos privilégios à sua turma. Os raros investimentos estatais em infra-estrutura também beneficiaram quase exclusivamente áreas habitadas por quicuios.
"Na vida cotidiana, sobretudo nas grandes cidades, as diferenças tribais não costumavam aflorar de maneira violenta", disse a VEJA o economista James Shikwati, diretor de uma ONG em Nairóbi. As piadas étnicas – de que os luias dão ótimos empregados domésticos ou que os cambas são bons de cama, por exemplo – são freqüentes nas conversas e raramente ofendem alguém. Há alguns estereótipos físicos associados aos diferentes grupos quenianos, como o de que os calenjins são excelentes maratonistas graças às longas e elegantemente musculares pernas. O fato de que sejam realmente uma estirpe de campeões ajuda (dois corredores calenjins foram vítimas dos conflitos: o maratonista aposentado Lucas Sang morreu apedrejado e o atual campeão mundial, Luke Kibet, foi ferido na cabeça). Na maioria das vezes, no entanto, é difícil dizer somente pela aparência a qual etnia pertence uma pessoa. Tanto que, nos massacres da semana passada, os bandos armados faziam bloqueios nas ruas para pedir documentos aos transeuntes – sobrenome e região entregam a origem. O golpe branco dado por Kibaki, comum aos governantes corruptos que dominam o cenário político da África, derrubou o Quênia para o mesmo patamar de intolerância tribal de seus vizinhos.