Um dos mais antigos privilégios da magistratura finalmente vai ser atacado com o rigor necessário. Trata-se da punição remunerada, ou seja, o direito à aposentadoria que é concedido aos juízes processados criminalmente e afastados compulsoriamente da carreira. Esse benefício corporativo é atribuído indistintamente a qualquer magistrado - de simples integrante de uma vara de primeira instância condenado por corrupção ou nepotismo a desembargadores estaduais e federais e até ministros de tribunais superiores acusados de venda de sentenças, de tráfico de influência e de envolvimento com o narcotráfico.
A proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê a revogação desse privilégio, mediante a alteração dos artigos 93, 95 e 103-B da Carta de 88, foi apresentada pelo deputado Raul Jugmann (PPS-PE) e já está tramitando na Câmara. “Provoca escândalo e perplexidade o fato de que aquele que usurpou de suas competências, desonrou o Poder Judiciário e promoveu o descrédito da Justiça seja agraciado com a concessão, à guisa de punição, de um benefício pecuniário suportado por toda a sociedade”, afirma o parlamentar pernambucano na exposição de motivos de seu projeto. “É interesse de todos, inclusive dos juízes, revogar esse privilégio, porque só denigre a imagem da Justiça. É um incentivo para desvios na magistratura”, conclui.
Por mais absurda e imoral que seja, a aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço concedida a juízes condenados criminalmente, um privilégio exclusivo nas chamadas “carreiras de Estado”, está prevista pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), que foi editada há mais de trinta anos, na época da ditadura militar. Com a redemocratização do País, os integrantes de todas as instâncias do Judiciário se mobilizaram para pressionar a Assembléia Constituinte a incluir o direito à punição remunerada na Carta promulgada em 88.
O lobby da toga foi tão poderoso que vários dos privilégios então conquistados pela corporação acabaram sendo incluídos em artigos protegidos pela cláusula pétrea prevista pelo parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição. Segundo o inciso III desse dispositivo, projeto de emenda constitucional que comprometa ou afete o princípio da separação dos poderes “não será objeto de deliberação” por parte do Congresso. Por isso, dizem os juízes, a proposta de Jugmann seria inconstitucional, por configurar uma tentativa de interferência do Poder Legislativo na esfera de autonomia institucional do Poder Judiciário.
Pela legislação em vigor, que o deputado Raul Jugmann em boa hora pretende mudar, os juízes estão sujeitos a seis penas disciplinares, cujo rigor varia conforme a gravidade da “ofensa à ordem jurídica e à dignidade do cargo”: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade com vencimentos proporcionais por tempo de serviço, aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais e demissão.
Segundo a Loman, a aposentadoria compulsória remunerada é aplicável ao juiz que for enquadrado em quatro situações: negligência manifesta no cumprimento de deveres do cargo; conduta incompatível com a dignidade, honra e decoro de suas funções; escassa ou insuficiente capacidade de trabalho; e procedimento funcional incompatível com o bom desempenho das atividades. Em todos esses casos, o juiz com tempo suficiente para aposentar-se é afastado compulsória e definitivamente dos quadros do Judiciário, recebendo vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.
Como era de esperar, vários setores da magistratura reagiram à PEC que está tramitando na Câmara. Apegando-se ao formalismo jurídico, eles alegam que, pelo princípio constitucional da separação dos poderes, o benefício da punição remunerada concedido a juízes condenados criminalmente somente pode ser extinto pelo próprio Judiciário, e não por lei ou emenda votada pelo Legislativo.
A questão, contudo, vai além do formalismo jurídico. Acima de tudo, ela tem de ser vista por seu lado ético, pois não é justo que juízes indignos da toga - felizmente uma minoria - tenham o direito de ser sustentados pela sociedade. É por isso que o Congresso tem de aprovar a PEC apresentada pelo deputado Raul Jugmann.