Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 06, 2008

DANIEL PISA

Teatro da realidade

sinopse

Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

O documentário Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, é muito simples; talvez ele seja o último cineasta a adotar o lema “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. A câmera, na verdade, fica num apoio fixo o tempo todo; a máxima variação que existe é entre o plano médio e o close. A idéia é misturar depoimentos reais com os de atrizes - Andréa Beltrão, Fernanda Torres, Marília Pêra e outras menos manjadas - e nos levar a pensar sobre a exposição de emoções, sobre como, em especial, aquelas mulheres encaram aquelas perdas com um vocabulário de expressões um tanto diferente do que se utiliza ao representar. Muita gente interpretou o filme como a velha demonstração das tais fronteiras nebulosas entre realidade e ficção, etc. Para mim, é uma afirmação sobre a irreprodutibilidade do real.

Sim, temos dúvidas sobre alguns depoimentos, mas não demora muito para distinguir qual é qual. Os “encenados”, pode notar, são mais redondos e enfáticos, ao passo que os “autênticos” (sempre entre aspas, afinal há muitos traços comuns) evitam ser desabridos, pois trazem um convívio ambíguo entre a memória da dor e o relativo distanciamento dela. A boca pode sorrir enquanto os olhos marejam, e a fala pode descrever em tom seco os fatos que mais as feriram. Não que uma atriz - como a que conta a história do filho que morre ao reagir a um assalto - não nos emocione até com a mesma intensidade; só que não tem os cacos e hesitações da memória mais profunda, por mais que tome emprestado de suas próprias vivências afetivas.

Outro ponto que não foi observado é a linha comum entre os depoimentos, imagino que proposital. Todas são mulheres; todas contam a dor de perdas de entes queridos como filhos e pais; todas mencionam sonhos relacionados a eles; e todas citam uma religião ou uma terapia como apoios para sair da depressão decorrente desses traumas, embora uma delas diga que ainda não teve a resposta de Deus sobre o motivo de ter tirado seu filho. Esse é outro tema antigo e espinhoso, e o documentário não se aprofunda nele. De qualquer modo, há uma relação clara com o tema principal. Expor as emoções é um exercício insuficiente, mas, quando se permite sua teatralização sem escapismo, como num ritual sem máscaras, há uma abertura para a superação.

Imprecar contra o destino pouco adianta. É a consciência que, pelas vias mais distintas, na bendita diversidade da natureza humana, traz forças - e é sua ausência que faz que as atrizes não consigam simular à perfeição essas forças, mas apenas as fraquezas. A idéia de que razão e emoção operam em circuitos paralelos, nesse documentário tão livre de efeitos ou julgamentos e tão sem medo dos assuntos fortes, é derrubada como tem sido em pesquisas de neurociência. Coutinho, conhecido por sua capacidade de fazer o entrevistado se abrir emocionalmente para a câmera, como aquele homem que canta My Way em Edifício Master, deu novo passo com esse Jogo de Cena. Somos todos atores - muito antes de Shakespeare já se dizia. Mas a vida não tem roteiro pronto e o desfecho não cabe em definições como “feliz” ou “infeliz”. A função da arte não é ordenar a realidade, senão até o ponto em que ela se mostra inordenável.

CADERNOS DO CINEMA

Pode-se dizer que O Império dos Sonhos (Inland Empire), de David Lynch, tem achados interessantes e não é nada convencional, mas o fato é que essas virtudes não sustentam o filme. O anterior, Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive), era bem melhor, porque mais satisfatório na combinação do quebra-cabeças com a narrativa direta. Ali já havia a crítica a Hollywood e ao “star-system”, à forma corrompida como se fabricam emoções. No novo filme, o que há de desconexo e obscuro pouco soma à história ou à experiência, a começar pelo momentos Lars von Trier do programa de auditório dos coelhos.

O enredo nem é tão complicado em si mesmo - a atriz que se confunde literalmente com sua personagem -, mas os saltos no tempo e os muitos “fios soltos” aborrecem em vez de intrigar. É como se Lynch estivesse brincando com sua câmera digital e se divertindo muito mais do que o espectador... Vi o filme no sábado e hoje, quarta-feira, mal me lembro de suas cenas.

RODAPÉ (1)

No fim de ano é comum que as editoras lancem livros de arte, uma das lacunas do mercado brasileiro por causa dos custos. E em 2007 não foi diferente. A edição de Matisse - Escritos e Reflexões sobre Arte (Cosac Naify) é caprichada e, como uma de suas pinturas, rica em redescobertas. “O pintor descarrega sua emoção ao pintar, mas não sem que sua concepção passe por certo estado analítico. Há análise no fazer do pintor. Quando a síntese é imediata, ela é esquemática, sem densidade, e a expressão se empobrece.” Cito essa frase não só porque tem a ver com meu tema de abertura, mas sobretudo para divergir da imagem de Matisse como um pintor do conforto. Se sua arte buscava criar uma emoção serena, não significa que não envolvia trabalho e reação ao convencional, que não tenha inovado ao criar um espaço circular a partir da superfície. Ao mesmo tempo, discordo do organizador, Dominique Fourcade, de que Matisse seja o modernista por excelência, papel que cai melhor em Picasso.

Outro belíssimo livro é Viagens de Descobrimento, organizado por Tony Rice (Andrea Jakobsson Estúdio), que reúne imagens de explorações de três séculos distintos, como a de Darwin a bordo do Beagle. Os objetos e documentos pertencem ao Museu de História Natural de Londres, um tipo de museu que há anos sonho e defendo que exista em São Paulo. Outra preciosidade é Debret e o Brasil, de Pedro Correa do Lago e Julio Bandeira (editora Capivara), com a obra completa do artista da Missão Francesa. E o livro Aleijadinho - Teatro da Fé, de José de Monterroso Teixeira (Metalivros), é de uma originalidade muito bem-vinda; voltarei ao assunto.

RODAPÉ (2)

O livro Proust Was a Neuroscientist, do jornalista, pesquisador e cozinheiro americano Jonah Lehrer (Houghton Mifflin), pertence a uma tendência que só deve se acentuar de agora em diante, a de autores ligados à ciência que tratam de literatura, filosofia e arte. Não por acaso a edição estampa elogios de Oliver Sacks, autor de Alucinações Musicais, e Antônio Damásio, que escreveu livro sobre Espinosa. Além de Proust, há ensaios sobre Walt Whitman, Paul Cézanne, Igor Stravinsky e outros. Lehrer não tem muito a acrescentar sobre cada autor, mas toma suas percepções como pretextos para explicar, por exemplo, o funcionamento do olfato, que, por ser equipado com mais de 350 tipos de receptores no nariz, requer a ativação de ampla porção de DNA, permitindo detectar até 100 mil cheiros distintos - como a “madeleine” que abre caminhos importantes no circuito da memória proustiana.

UMA LÁGRIMA

Faltou vertê-la para Oscar Peterson na semana passada. O jazz teve e tem grandes pianistas, como Art Tatum, Bill Evans, Thelonious Monk, Erroll Garner ou Keith Jarrett, para citar favoritos, mas Peterson foi único. Usou o virtuosismo não para se exibir, mas para criar um estilo inovador e claro, um modo ao mesmo tempo acelerado e sofisticado de tocar as composições, que muita gente imitou e ninguém equiparou. Seu trio com Ray Brown e Herb Ellis dividiu a história com seu swing, seu balanço entre o emocional e o cerebral. Treinado em Bach e Rachmaninov, Peterson tinha mais condições - e não menos - de improvisar do que instrumentistas menos informados; e foi por isso que fez a passagem de Tatum a Monk. “A técnica é algo que você usa para fazer suas idéias audíveis”, disse em entrevista. Disse tudo. Agora você me diga: quem ainda será ouvido daqui a 50 anos: Oscar Peterson ou Karlheinz Stockhausen?

DE LA MUSIQUE

Quem também gostava de piano e nele misturava o erudito e o popular era Tom Jobim, que tinha três, inclusive um Steinway em Nova York, e ali o vemos boa parte do tempo no agradável documentário A Casa do Tom, de Ana Jobim, com fotos e filmetes mais íntimos do compositor. Piano e a mata atlântica eram suas maiores paixões, muito bem escolhidas, e nesse período final de sua vida é um prazer vê-lo cercado de amigos, crianças, bichos e charutos, rindo do nacionalismo e da política e tão dedicado à música. Dizem que a bossa nova era uma utopia brasileira e que João Gilberto é mais inventivo, mas basta ouvir Tom ao piano por dez segundos para reafirmar sua independência e grandeza.

POR QUE NÃO ME UFANO

Não precisa mais do que uns dias no litoral brasileiro para ver os estragos da política sobre a economia. Muitos deixaram de viajar de avião e foram ampliar a invasão das praias, cujas cidades não têm água, alimento, rua, hospital e segurança suficientes para atender às pessoas. Em trechos como o de Bertioga a especulação imobiliária e a ocupação dos mananciais criam problemas sérios, não apenas de tráfego. É preciso pensar à frente para que o crescimento se sustente.


'Os depoimentos ‘encenados’, pode notar, são mais redondos e enfáticos que os ‘autênticos’'

'Quem ainda será ouvido daqui a 50 anos: Oscar Peterson ou Karlheinz Stockhausen?'




Aforismos sem juízo
O emocionalismo, na maioria das vezes, é o pior inimigo da emoção.

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