Chávez quer que as Farc, grupo que vive do terror,
do seqüestro e do tráfico de drogas, sejam aceitas
como uma força política legítima na Colômbia
Duda Teixeira
"Todas as noites, quando olho para as correntes que nos convertem em parte da árvore à qual estamos presos, lembro-me de que foram as Farc que nos seqüestraram." |
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Que qualificação se dá a uma organização de seqüestradores e narcotraficantes cujas vítimas são acorrentadas pelo pescoço, obrigadas a marchas forçadas no meio do mato e submetidas a cirurgias improvisadas com facas de cozinha? As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), responsáveis pelas atrocidades descritas acima – cujos detalhes assustadores foram amplamente expostos pelas cartas enviadas por seqüestrados e pelos depoimentos de Clara Rojas e Consuelo González, as duas vítimas libertadas há duas semanas –, são corretamente descritas como uma organização de criminosos cujos métodos são terroristas. Delinqüentes comuns, eles vivem de seqüestros, tráfico de drogas e extorsão. Terroristas, eles torturam os seqüestrados, cometem atentados a bomba e executam a sangue-frio militares e civis. O debate semântico só existe, na verdade, devido ao apelo feito pelo presidente venezuelano Hugo Chávez para "o reconhecimento da guerrilha colombiana como forças insurgentes". O coronel sustenta que as Farc têm um projeto político legítimo, que ele associa ao seu próprio socialismo bolivariano.
Sua proposta recebeu um único apoio – o do presidente Daniel Ortega, da Nicarágua, cujo passado inclui a tomada do poder pela força das armas. A União Européia e os Estados Unidos anunciaram a manutenção das Farc em suas listas de organizações terroristas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu a necessidade de classificar como abominável o uso do seqüestro como instrumento de luta política. Os colombianos também não têm dúvida sobre o assunto: as pesquisas de opinião mostram que 93% da população se opõe às Farc. Na semana passada, manifestantes reuniram-se diante da embaixada venezuelana em Bogotá empunhando cartazes com a frase "As Farc são terroristas, sim". Clara Rojas, a seqüestrada libertada pelas Farc, quando perguntada se concordava com a afirmação de Chávez de que seus algozes não são terroristas, respondeu com um misto de surpresa e indignação: "Mas eles mantêm pessoas seqüestradas!". O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, foi razoável: disse que pararia de chamar as Farc de terroristas se elas deixassem de atacar a população colombiana.
Desde a década de 70, a ONU tenta encontrar uma definição de um conceito amplo de terrorismo. Nunca chegou a um capaz de satisfazer as objeções levantadas por países envolvidos eles próprios com atividades terroristas. Do ponto de vista teórico, uma causa justa, como a luta contra a tirania ou a ocupação estrangeira, legitimaria o emprego da violência política. Não é esse o caso das Farc. A Colômbia é uma democracia, e são exatamente eles, os narcocomunistas, que a querem converter em tirania. De qualquer forma, só criminosos e fanáticos defendem atrocidades cometidas contra civis indefesos. A intervenção de Hugo Chávez decorre, em parte, da simpatia que o coronel nutre pelos métodos e objetivos da organização. O venezuelano sabe que o narcocomunismo não tem condição de vencer, mas se dá por satisfeito se os terroristas causam problemas ao presidente Uribe, a quem detesta. Por fim, e sobretudo, Chávez quer salvar as Farc da derrota.
Se o governo colombiano aceitasse as Farc como um interlocutor legítimo, retrocederia em conquistas relevantes. Desde a eleição de Uribe, em 2002, a organização criminosa tem sido combatida com firmeza e está acuada. Metade de seu contingente já desertou. Suas bases urbanas foram varridas. Dentro do mato, contudo, continua a urdir maldades. Novos membros são geralmente recrutados por volta dos 12 anos, antes de que possam construir uma visão própria do mundo. Estima-se que entre 20% e 30% dos combatentes tenham menos de 18 anos. Após se embrenharem na selva, os jovens são isolados do mundo exterior, da família e perdem o próprio nome, substituído por um "nome de guerra". É o mesmo esquema de lavagem cerebral utilizado por grupos de fanáticos religiosos. O objetivo é desumanizar o novo membro, de forma a transformá-lo em um adepto sem vontade própria ou compaixão. Clara Rojas contou que os membros das Farc só sorriem se recebem autorização superior para isso. "Cinco ou sete pessoas do secretariado tomam as decisões que valem para todas as frentes das Farc", disse a VEJA o cientista político colombiano Gerson Arias, da Fundação Idéias para a Paz. Nos últimos doze anos, quase 7 000 seqüestrados passaram pelos cativeiros das Farc. Não há sentido econômico nos seqüestros, já que os terroristas têm no narcotráfico uma fonte rentável de financiamento. A organização domina hoje todas as etapas de produção da cocaína na Colômbia, do plantio à exportação. Estima-se que isso lhe renda 590 milhões de dólares anuais. Se os seqüestros continuam, é por terem papel relevante na estratégia principal das Farc, que é a de aterrorizar e subjugar os colombianos.
"Por estar doente, tiraram a corrente com cadeado do meu pescoço. Mas os meus objetos pessoais tiveram de ser transportados por eles (os seqüestradores) e de um dia para o outro desapareceram. Quer dizer, fiquei sem nada, apenas com o que vestia." "Eu tinha de me arrastar pela lama para fazer as minhas necessidades, só com a ajuda dos meus braços, porque não podia me levantar." "Não é a dor física que me detém, nem as correntes em meu pescoço, mas essa agonia mental, a perversidade dos maus e a indiferença dos bons. É como se não valêssemos nada, se não existíssemos." Luis Mendieta, coronel da Polícia Nacional, refém das Farc há nove anos |
"Padeço de muitas doenças: os problemas cardíacos, a coluna vertebral, (...) me leva a não poder agachar com facilidade, não carrego nada, não posso lavar minha roupa, ou mesmo minha colher." "Tenho dor de cabeça com freqüência, devido a um golpe (sofrido) quando me levavam transportado em uma maca e me deixaram escorregar..." "Creio que há duas alternativas para minha saúde. Poderiam solicitar ao presidente Fidel Castro que intervenha junto ao presidente Uribe e ao secretariado das Farc, para ver se é possível meu traslado a um hospital de Cuba para tratamento. Se me recuperar, passaria para uma prisão em Havana, na minha qualidade de refém político à espera de um acordo humanitário." Jorge Gechem, ex-senador, refém das Farc há cinco anos |