Em O Gângster, um policial honesto e um bandido
implacável disputam a simpatia da platéia – e a
obrigam a examinar suas reações mais instintivas
Isabela Boscov
Divulgação |
Washington, o traficante, e Crowe, o policial, acham interesses em comum: uma trajetória terrível e fascinante |
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Por mais de quinze anos, Frank Lucas foi capanga de um dos chefões do Harlem, o bairro negro nova-iorquino. Com a morte do patrão, em 1968, o esperado era que voltasse quieto e calado à obscuridade ou virasse subalterno de algum outro bandido da área. Lucas, porém, havia traçado planos audaciosos para conduzir-se até o topo do crime, acima dos policiais corruptos, dos mafiosos italianos ou de qualquer outra organização ilegal. Nascido numa família tipicamente pobre do Sul, Lucas queria ser um negro com poder. Poder não apenas sobre outros negros pobres, o "eleitorado" de seu mentor, mas poder com ramificações dentro de todos os estratos sociais. Num momento em que o movimento pelos direitos civis mal começava a colher resultados práticos, tal status era inimaginável. Operando nesse vácuo, e movido não apenas pela ganância, como também pelo sentimento de revanche racial e de classe, Lucas se tornaria, até meados dos anos 70, um dos criminosos mais ricos, astutos e vorazes da crônica americana. Essa trajetória assustadora é o tema de O Gângster (American Gangster, Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país. Dirigido por Ridley Scott com uma convicção ausente desde Gladiador, o filme (baseado no livro Gângster Americano, lançado aqui pela Martins Editora) opõe dois dos melhores atores em atividade: Russell Crowe, como o policial que detectou a existência de Lucas, e Denzel Washington, numa das mais extraordinárias atuações de sua carreira, como o protagonista. Mas o que decididamente eleva O Gângster é esta visão: a de que muito mais do que dinheiro, ou um embate entre lei e crime, está em jogo. É na esfera do pacto social, ou de suas insuficiências e distorções, que essa história se desenrola.
Lucas estabeleceu quase sozinho toda a rede de tráfico de heroína nos Estados Unidos e foi responsável por viciar milhares de pessoas na mais destrutiva das drogas. Tirando partido da Guerra do Vietnã, negociou sua matéria-prima diretamente com os produtores do Sudeste Asiático e usou os transportes militares para trazê-la para dentro do país, oferecendo heroína mais pura a preço mais baixo que o da concorrência. Era um empresário implacável, que aniquilava os rivais. Nunca tocou em seu próprio produto; escarnecia das roupas e do comportamento extravagantes que os negros começavam a adotar; levava a mãe à igreja aos domingos. Mas, se voou abaixo do radar das agências de repressão aos entorpecentes por tanto tempo, foi por causa da cor de sua pele – porque ninguém acreditava que um negro pudesse ser tão organizado ou subjugar os brancos nos negócios. Em última análise, Lucas se aproveitou do menosprezo de que era alvo para dar vazão ao desprezo que ele próprio dirigia aos menos inteligentes e menos fortes do que ele. Se caiu foi porque topou com um homem parecido com ele.
Richie Roberts, o detetive interpretado por Russell Crowe, era um judeu de classe média baixa que estudava direito à noite e ganhara a hostilidade dos colegas por ter devolvido 1 milhão de dólares apreendidos numa batida. O que o filme propõe, e defende com eficácia, é que Richie notou Lucas por ser também ele um homem de quem não se esperava nada, mas que queria muito. A certa altura, policial e criminoso descobrem ter um interesse em comum, que os leva a um inesperado acordo e a uma reação surpreendente da platéia: o alívio pelo preço brando que Lucas pagará por ser um assassino em massa. De forma semelhante a Tropa de Elite, assim, O Gângster pega o espectador desavisado, desculpando o que não gostaria de desculpar. É um desses raros filmes que vêm não para simplificar, mas para complicar.