Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 06, 2008

Miriam Leitão Era miragem

A frase mais repetida nas reportagens sobre o terror no Quênia foi que o país era o oásis africano. Talvez não haja oásis na África. Em 1993, uma guerra tribal, exatamente como a dos últimos dias, deixou dois mil mortos. O descaso em relação à África é que explica as análises apressadas sobre o continente, que ficou eternamente marcado pela mais trágica e desumana das colonizações.

Para entender melhor o Quênia e seus descaminhos, talvez um bom começo seja ler o livro “Inabalável”, da queniana ganhadora do Prêmio Nobel Wangari Maathai. Ela é, ao mesmo tempo, uma quicuio e uma cidadã do mundo. Nasceu na zona rural das terras altas do Monte Quênia, na maior etnia do país, a quicuio. Filha de mãe analfabeta e pai polígamo (a mãe era uma das quatro esposas do pai), ela foi a primeira mulher na África Ocidental e Central a se tornar doutora. Fez pós-doutorado.

É fluente em vários dialetos locais e idiomas do mundo, como inglês, francês e alemão. Por ter atravessado a realidade queniana, da pobreza rural à elite educacional, por ter visto na infância a tragédia da colonização e depois ter lutado contra os mal disfarçados ditadores, Maathai nos traz um precioso recorte da sociedade e história quenianas. Isso impede seus leitores de repetir a frase simplista: de que o Quênia era o oásis africano. Se assim fosse, seria preciso concluir que o “oásis” foi inexplicavelmente acometido de um ataque de loucura tribal.

Há explicação para o surto de violência; há antecedentes.

As raízes do conflito de agora — que inclui barbáries como o estupro coletivo — são mais remotas que a fraude na eleição presidencial.

Numa entrevista que concedeu esta semana à CNN, Maathai disse que o conflito tribal sempre esteve latente no país e que é muito fácil para os políticos convencer as tribos de que elas não estão tendo a parcela de poder e de recursos que merecem. No livro, a Prêmio Nobel previu que novos episódios violentos ocorreriam: “Esses conflitos tendem a ressurgir em diferentes partes do país sempre que políticos inescrupulosos incitam suas comunidades contra outras.” A disputa entre as tribos sempre foi manipulada pelos políticos. Foi assim em 1993, quando o presidente Daniel Arap Moi e seus correligionários provocaram o conflito para aumentar o próprio poder. Como todo país africano, os contornos do Quênia nasceram numa prancheta da Conferência de Berlim, em 1885, quando foi desenhada a partilha do continente entre as maiores potências do mundo ocidental.

Tribos divididas ao meio, tribos rivais confinadas na mesma área, rivalidades e fraternidades ignoradas pelos colonizadores.

Maathai viveu na infância, nos anos 40, em reserva criada pelos colonizadores para confinar a população local. Eles eram retirados de seus locais ancestrais para que as terras fossem dadas aos colonos trazidos da Inglaterra. “Nós nos sentíamos estrangeiros em nosso próprio país”, comenta ela no livro.

Jamais a colonização européia, que retalhou a África em pedaços aleatórios, poderá ser inocentada de toda a tragédia que tem acontecido desde então.

Hoje a África passa por um boom econômico. Em 2007, o Quênia cresceu 6,5%. Em todo o continente, o crescimento tem sido puxado pela China, que vasculha a África para retirar todos os minérios, metais e combustíveis de que precisa, com métodos que lembram os meios e modos do velho colonialismo.

Oásis — no sentido mais preciso da palavra — o Quênia parecia ser na descrição que Maathai faz do meio ambiente que viu na sua infância: terras férteis, água abundante, clima ameno. E isso começou a ser impiedosamente destruído pelos europeus no final da colonização, com o desmatamento descontrolado e o plantio de espécies exóticas à região. Prática copiada pelos governos locais. O meio ambiente destruído foi o caminho mais curto para o empobrecimento e aumento dos conflitos no país. E foi o que a levou à militância.

Maathai criou o movimento Cinturão Verde apenas para replantar árvores nativas, tentando recriar o oásis verde que um dia seu país tinha sido. Para conseguir seu objetivo aparentemente ingênuo, acabou batendo de frente e revelando todas as contradições do país. Os governos que se diziam democratas e fraudavam eleições, o poder econômico e a corrupção determinando a destruição ambiental, o extraordinário machismo da sociedade africana. Em uma das vezes que enfrentou o governo, denunciando sua participação no massacre de 1993, um político do partido oficial ameaçou-a, da tribuna do parlamento, de circuncidá-la à força.

Cerceado, ameaçado, perseguido, o Cinturão Verde conseguiu replantar 30 milhões de árvores no Quênia e exportou métodos e objetivos para outros países africanos. Ela própria foi da militância verde para a luta pela democracia.

A luta contra o Kanu, partido que se manteve no poder por décadas, condenava exatamente essa prática do conflito plantado entre as tribos. “O governo nomeava chefes para cidades e aldeias, ele usava esses indivíduos para controlar as regiões e organizar ataques contra comunidades que, segundo o regime, precisavam de uma ‘limpeza’. É por isso que o movimento pró-democracia pregava a dissolução dessa estrutura. Infelizmente quando chegou ao poder, em 2002, o novo governo democrático manteve esse sistema.” E é esse mesmo governo, que nasceu da luta democrática, que agora frauda eleições e provoca o confronto entre as tribos.

Uma foto dilacerante, publicada pelos jornais na sextafeira, mostrava crianças mortas empilhadas como lixo.

O mundo olha para lá espantado e desinformado, prestes a rapidamente esquecer o continente, assim que o pior momento passar.

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