Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 22, 2008

Merval Pereira - Transparência e cidadania




O Globo
22/1/2008

Duas questões que estão em evidência nos dias atuais demonstram a importância de um planejamento orçamentário transparente para o exercício da cidadania. No plano federal, o governo e o Congresso não chegam a um acordo sobre os cortes que deverão ser feitos, avaliados em R$20 bilhões, e ninguém sabe ainda quais serão os critérios que os nortearão. No plano municipal, o prefeito Cesar Maia, do Rio, enfrenta uma queda-de-braço com associações de moradores de diversas regiões da cidade em torno da utilização do IPTU. No caso federal, existem plenas condições de se fazer cortes pontuais, sabendo exatamente qual será a conseqüência de cada um deles, devido a uma reforma do Estado realizada no segundo mandato de Fernando Henrique, que criou um orçamento com metas e objetivos mensuráveis, sistema que o governo Lula preservou.

Já os estados e municípios não são obrigados a seguir o mesmo modelo até que seja regulamentado, embora tenha sido feito na época um processo grande de transferência de metodologia, e muitos estados, como Ceará, Minas Gerais e Espírito Santo, tenham hoje essa estrutura funcionando como instrumento gerencial.

No Rio, a Câmara de Vereadores aprovou novas planilhas para o prefeito dizer exatamente, bairro por bairro da cidade, como iria atender as demandas e a ordem de prioridade delas. Cesar Maia argüiu a inconstitucionalidade e, mesmo sem pronunciamento da Justiça, ignorou o que foi aprovado pela Casa.

A ideologia dessa reforma do Estado é de instrumentalizar a sociedade para controlar os governos. Os relatórios dos programas incluídos no Programa Plurianual (PPA) são enviados anualmente ao Congresso, mas não temos a cultura de cobrança. Ao mesmo tempo, esse sistema dificulta ou limita as emendas parlamentares, e os governos que querem manobram os interesses dos deputados e vereadores.

José Paulo Silveira, diretor-associado da empresa de consultoria Macroplan e ex-secretário de Planejamento do Ministério do Planejamento ao tempo da reforma gerencial do Estado, ressalta que ela teve como foco inicial as instituições, quando foram criadas as agências reguladoras, o conceito dos ministérios como núcleo estratégico do governo, um redesenho do Estado em busca de maior capacidade gerencial.

Ele vê o momento em que o orçamento passou a ser feito de outra maneira, com a crise da Rússia já no segundo mandato de Fernando Henrique, muito semelhante ao atual, em que o governo perdeu a CPMF e ainda corre o risco de enfrentar crise internacional. Naquele momento, foi preciso rever o orçamento e instituir o superávit fiscal de cerca de 3% do PIB. Até então, o orçamento tinha um viés contábil, e passou a ser feito objetivando resultados.

"Com as metas e os objetivos definidos, fica mais lógico o corte. Quando não se tem esses elementos de informação, a saída mais fácil é o corte linear", comenta Silveira, que estranha que esse método tenha sido cogitado pelo governo.

No Rio, a proposta de que o orçamento deve ser feito por bairros, com indicadores socioeconômicos, prioridades, metas, avaliação de resultado e, de preferência, com um gestor que se responsabilize pelo cumprimento das ações e programas aprovados nessa lei orçamentária, não vingou, embora tenha sido aprovada pela Câmara dos Vereadores.

O movimento para que o IPTU seja pago apenas no último mês, mesmo com multa, impedindo que o dinheiro arrecadado seja utilizado para obras no período eleitoral, está ganhando terreno, e Cesar Maia reage de maneira incoerente: em certos momentos, chega a debochar dos cidadãos envolvidos no movimento, alegando que ganhará mais dinheiro com as multas; em outros ameaça deixar de fazer investimentos na cidade.

Mas que investimentos são esses, quais são as prioridades, de acordo com que critérios? Há associações de moradores que reclamam de buracos nas ruas, da limpeza da cidade, da falta de sinalização e de segurança. No caso do orçamento das cidades, as demandas e as necessidades de cada bairro ou região, por exemplo, deveriam ser levantadas e discutidas através das associações de moradores e/ou outras entidades organizadas, dos vereadores eleitos por essas regiões ou pela cidade como um todo.

O orçamento passa a ser uma espécie de contrato anual entre o prefeito e o cidadão, e se ele não cumprir, terá que explicar por quê. Sem essa transparência orçamentária, o resultado é desperdício e corrupção. O Fundo Monetário Internacional (FMI) tem desde 2001 um "Código de boas práticas em transparência fiscal", baseado em quatro princípios: clareza institucional, processo orçamentário aberto, informação pública e integridade.

Enquanto diversos países já conseguiram avançar nessa discussão maior sobre transparência orçamentária, nós no Brasil não conseguimos, de um lado, que o governo federal, tendo os instrumentos à mão, faça uma revisão orçamentária de acordo com as prioridades do país e não dos congressistas ou das corporações.

De outro, sequer se consegue aprovar os projetos que criam os novos anexos orçamentários, para substituir os que hoje são usados por todos os governos desde 1975, não atendendo às previsões da reforma orçamentária embutida na Constituinte de 1988.

Chega-se ao paradoxo de hoje no Rio, quando parte expressiva da cidadania, mesmo que ainda não numericamente, acha que seu imposto vai ser usado apenas para fins eleitorais e decide só pagar depois das eleições. É provavelmente algo inédito uma clareza tão grande por parte dos cidadãos-eleitores.

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