Para quem?
"As questões relativas à escola foram seqüestradas
pela agenda da corporação dos funcionários do ensino. Defender o professor não é o mesmo que defender
os alunos? Esse discurso é o dos profissionais do ensino"
Mario Rodrigues | |
Passeata de funcionários do ensino: melhores salários não melhoram aulas |
Falemos de duas salas de aula. Na primeira delas, a professora Bety ensina matemática. O assunto pode parecer árido – geometria espacial –, mas, com suas esferas invisíveis dentro de cubos e pirâmides, Bety enfeitiça os seus alunos, que assistem à exposição da professora em silêncio compenetrado, interrompido apenas por perguntas prenhes de curiosidade. A segunda aula é de biologia. O professor, cujo anonimato preservo, é chamado, à boca pequena, de "ET" pelos alunos. Sua dicção é monocórdia e a pronúncia catequética de termos estranhos – "o ta-las-so-ci-clôôôô" – choca-se com a balbúrdia que impera entre os alunos. Pedaços de giz são atirados ao quadro-negro, bolinhas de argila vão parar nas paredes. A algazarra é tamanha que, no dia em que as provas corrigidas do bimestre seriam entregues, um aluno resolve trazer uma arma de brinquedo para intimidar o professor.
Essas duas classes, na verdade, são uma só. O mesmo colégio, os mesmos alunos, o mesmo espaço físico, os dois retratos ocorridos no mesmo ano. Conheço-a bem: é a classe na qual me formei no ensino secundário.
Não conheço estudos empíricos sobre o assunto, mas durante a minha vivência de estudante casos como esses descritos acima formaram a convicção de que o problema da indisciplina na escola está fortemente associado à qualidade da aula que está sendo ministrada. Eis uma idéia que deve soar no mínimo estranha, possivelmente sacrílega, a qualquer pessoa bem informada que acompanha o debate educacional brasileiro. Pois, na questão da indisciplina, certamente predomina a leitura de que esse é um fenômeno de responsabilidade exclusiva do aluno – desajustado, vagabundo, porra-louca etc. –, de sua família – os pais que não ensinam mais valores aos filhos e só se lembram de ir à escola para reclamar quando o filho leva bomba – e da sociedade em geral, cada vez mais violenta e desrespeitosa.
Em realidade, não é apenas na questão da indisciplina escolar que a responsabilidade pelos nossos fracassos é atribuída à sociedade ou aos alunos e que os agentes do sistema educacional, especialmente os professores, aparecem apenas como as vítimas, que lutam sem jamais desistir apesar da enorme maré contra. Todas as questões relativas à escola foram seqüestradas pela agenda da corporação dos funcionários do ensino. Pense naquilo que você, leitor, acredita ser a solução para o problema da nossa educação. Provavelmente será algo que englobe alguns ou todos os seguintes fatores: aumento do investimento em educação, aumento do salário dos professores, diminuição do número de alunos nas salas de aula, aumento do número de horas letivas. Agora pense nesses fatores e pergunte-se: a quem eles beneficiam? Aos alunos ou aos profissionais do ensino?
Você provavelmente deve estar pensando: não é a mesma coisa? Professores mais satisfeitos e motivados não darão aulas melhores? Defender o professor não é o mesmo que defender os alunos? Você sucumbiu à propaganda da corporação, mas não se assuste: assim como os alemães da época hitlerista acreditavam que os não-arianos eram raças inferiores e os cubanos sob Fidel crêem que podem creditar todos os seus males à perseguição dos Estados Unidos, é difícil para qualquer um ter uma idéia diferente da propagada pelo discurso único. No caso da nossa educação, esse discurso é o dos profissionais do ensino.
É uma cantilena que tem lógica, claro. Faz sentido imaginar que professores e funcionários de ensino mais bem pagos serão mais motivados e, portanto, darão aulas melhores, ou que conseguirão dedicar mais atenção a cada aluno em salas menores, ou que a presença de equipamentos multimídia ou de uma quadra poliesportiva tenha efeitos positivos – assim como é bastante lógico imaginar que o Sol orbita ao redor da Terra, que o planeta é quadrado, que uma garrafa cheia de água chegará antes ao solo do que uma garrafa vazia ou que a melhor forma de combater uma doença que se espalha pela corrente sanguínea é retirando sangue do corpo por meio de sanguessugas. Muito do que é lógico é falso, e muito do que é verdadeiro é contra-intuitivo. A única maneira de estabelecer a verdade é testando, empiricamente.
No campo educacional, essa medição vem sendo feita de forma sistemática e metódica há mais de dez anos, e revela alguns achados talvez surpreendentes. Quando se analisa o desempenho de alunos em testes e se cotejam as características de suas escolas e professores, descobre-se que o número de alunos em sala de aula não tem impacto significativo sobre o aprendizado, nem o salário dos professores, nem a presença de infra-estrutura rebuscada nas escolas. Esses mesmos estudos empíricos revelam outros dados interessantes. Alguns dos fatores associados ao melhor desempenho do alunado não apenas não trazem benefícios aos professores como fazem com que tenham de trabalhar mais: alunos que fazem o dever de casa com mais freqüência, por exemplo, têm desempenho melhor – e esse desempenho é ainda melhor se o professor comenta a sua avaliação, em vez de apenas marcar "certo" ou "errado". Também têm desempenho superior alunos que são avaliados constantemente por meio de provas, alunos de professores com um conhecimento mais aprofundado da matéria que ensinam e alunos de professores que faltam menos ao trabalho. Não é curioso que nenhum desses fatores conste da agenda dos sindicatos de professores quando eles fazem manifestos pela melhoria da qualidade da educação? Não, claro que não. Sindicatos devem defender a sua categoria. O problema não é que a corporação dos profissionais do ensino puxe a brasa para a sua sardinha; o problema é que eles tenham conseguido fazer com que o país aceite como sendo um programa para o bem comum aquilo que é, na verdade, a defesa dos interesses da sua categoria profissional.
Esse deslocamento de prioridades só é possível porque há um vácuo na nossa sociedade, que parece ter se esquecido de quem é a nossa educação e para quem ela é feita. É bom lembrar, portanto, que a educação pública é de, digamos, "propriedade" do povo brasileiro, e não apenas dos profissionais que nela trabalham. Esses profissionais são servidores públicos e, portanto, não cabe a eles formular política pública, mas sim acatar o programa decidido pela sociedade por meio dos seus representantes eleitos. E isso em todos os níveis: assim como o professor de 1ª série de uma escola pública não pode decidir quando o aluno deve ser alfabetizado, os doutores da pedagogia da USP não podem formar, com dinheiro público, professores que eles desejam que sejam vanguardistas da revolução socialista. Finalmente, precisamos lembrar para quem é nossa educação. Um sistema educacional é criado para educar os alunos. É isso – só isso – que importa. Se as salas de aula são agradáveis ou não para o professor e se a escola é suficientemente convidativa para os seus funcionários são questões que deveriam ser relevantes apenas na medida em que comprovadamente afetam o desempenho dos alunos. A idéia de que nosso aluno não aprende porque não se interessa ou porque os pais não se importam com a escola é ridícula, para não dizer maliciosa. Seria algo na composição do nosso ar, ou algum vírus na água que os brasileiros bebem, que aniquila a curiosidade das nossas crianças e o desejo dos pais de ver os filhos progredindo na vida?
Precisamos de um reordenamento da nossa leitura da educação nacional. Cada vez que um aluno não aprende – e estão aí todos os testes, nacionais e internacionais, mostrando que o nosso aprendizado é catastrófico –, precisamos primeiro imaginar o que está errado na educação que ele recebe. Se ele não se interessa pela aula, é necessário ver se a aula não é desinteressante. Se ele não estuda, precisamos checar se ele recebe material suficiente e se tem as avaliações necessárias para saber que precisa estudar. Se o aluno não faz os deveres quando chega em casa, temos de verificar se eles estão sendo prescritos pelos professores, se estão sendo corrigidos e se o fato de o aluno não os fazer tem alguma conseqüência. Se os pais não participam da escola, devemos questionar se a escola se organiza de maneira a realmente permitir a participação dos pais, se eles se sentem convidados ou ignorados pelos diretores e professores de seus filhos, se percebem a escola como um espaço no qual podem e devem atuar ou como um ente distante, alheio, fechado. Somente depois de esgotados esses questionamentos é que deveríamos partir para a culpabilização de pais e alunos.
Parece radical, mas na verdade é óbvio. Se parece estranho, é bom sinal: do jeito que anda nossa educação, é bastante provável que o senso comum esteja errado.