"Se as Ordenações Filipinas fossem vigentes e cumpridas, hoje, os problemas de desmatamento e queimadas no Brasil estariam resolvidos"
Ao Brasil falta riqueza para se igualar aos grandes incineradores de combustíveis fósseis no que diz respeito à poluição e ao aquecimento global. Mas o país compensa isso amplamente, pois é egrégio incendiário e desmatador. Onde estão as soluções novas e milagrosas? Ou quem sabe devemos buscar essas soluções no passado?
No início do século XVII, o marco legislativo português (e brasileiro, por via de conseqüência) eram as Ordenações Filipinas. São leis extraordinariamente amplas, cobrindo até urbanismo e meio ambiente. A tese simplória do presente ensaio é que, se as Ordenações Filipinas fossem vigentes e cumpridas, hoje, os problemas de desmatamento e queimadas no Brasil estariam resolvidos. Vejamos alguns exemplos.
É fulminante a legislação que protege as árvores consideradas úteis:
"O que cortar árvores de fruto (...) pagará a estimação dela ao seu dono em três dobro (sic). (...) E se for valia de 30 cruzados, e daí para cima, será degredado para sempre para o Brasil" (Um comentário cínico: quem sabe nosso atavismo destruidor não resulta de que para cá vieram os degredados por crimes contra a natureza?).
Já então a silvicultura era considerada uma ciência, a ser estudada e aplicada nas florestas (não é sempre o caso das nossas leis atuais):
Atômica Studio |
"Sendo sumamente necessário o conhecimento da física das árvores, para que não aconteça fazer-se o corte em tempo incompetente (...) determino que façais anualmente plantar a quantidade possível daquelas árvores, mais próprias para delas depois de estarem no seu devido crescimento fazerem os cortes (...). E toda pessoa que tomar mais quantidade de pau de que lhe for dado licença, além de o perder para minha fazenda (...) e passando de cem quintais morrerá por ele e perderá toda a sua fazenda (...). Nenhum dos sobreditos possuidores de terra poderá (...) derrubar e incendiar aquelas matas e arvoredos que se chamam e forem reputadas matas virgens".
"E quanto às roças que se por temporadas podem fazer nos matos, ou maninhos dos lugares que não são para durarem lavoura, por fraqueza da terra, onde estão, mas que um ano, dois, ou três (...) e se acharem que queimando-as, rompendo ou cortando os ditos matos ou árvores, será dano geral, ou a alguns em particular (...) não dêem as ditas terras para roças."
Não foi por falta de legislação atemorizante que o pau-brasil desapareceu:
"Primeiramente, hei por bem e mando que nenhuma pessoa possa cortar (...) o dito pau-brasil, (...) sem a expressa licença (...) e o que contrário fizer, incorrerá em pena de morte e confiscação de toda a sua fazenda".
Observamos também que o legislador seiscentista era mais sagaz do que boa parte dos de hoje. Nas Ordenações Filipinas se eliminam as motivações para queimar a terra. Se ela pegasse fogo, não poderia ser usada:
"E porque alguns, por caçarem nas queimadas, ou fazerem carvão ou pastarem com seus gados, põem escondidamente fogo nos matos, para se poderem aproveitar das queimadas, e porque não se sabem quem o fez, não são castigados, mandamos que pessoa alguma não cace em queimada, do dia que foi posto fogo, de que seguiu algum dano, a trinta dias, nem entre nelas a pastar com seu gado até a Páscoa florida, e carvoeiro algum não faça dela carvão, até dois anos."
O combate à poluição das águas é analogamente drástico:
"E pessoa alguma, não lance nos rios e lagoas em qualquer tempo (...) algum material com que se o peixe mata e quem o fizer, pela primeira vez seja degredado (...). E sendo de menor qualidade, seja publicamente açoitado (...) ."
Lendo as Ordenações Filipinas, percebemos que os problemas e soluções são antigos. 1) Nelas há uma forte preocupação com a aplicação da ciência para a conservação dos recursos naturais. 2) Há uma decisão inequívoca de usar as leis para impedir sua degradação – nada mais atual (mas as penas de açoite ou de morte talvez careçam hoje de popularidade). 3) Revelam sagacidade na sua formulação. 4) Contudo, o arraso que fizemos em nossas terras e águas mostra que não bastam boas leis, é preciso que sejam aplicadas com eficácia e energia. Esse tem sido o grande problema desde então.
Claudio de Moura Castro é economista – Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br