O Estado de S. Paulo |
8/1/2008 |
Quando boa parte do País, aí incluída com destaque a oposição, deu crédito à palavra do presidente Luiz Inácio da Silva sobre sua “ojeriza” a pacotes e sua disposição de não reagir ao fim da CPMF com aumento de impostos, estivemos diante de um exercício de auto-engano pleno. Bem ao gosto brasileiro, de testada vocação para se deixar levar na conversa. Principalmente se o conversador é popular e poderoso. Juntem-se à tendência o cansaço e a culpa acumulados no período de combate pré-natalino - no Brasil contraditar é sinônimo de implicar, ato quase vergonhoso -, consolidou-se a conclusão de que estava esgotada a cota de contestação nacional e optou-se por virar as costas às evidências. Fez-se de conta que o presidente da República e seus ministros sempre falam a verdade, ignoraram-se as inúmeras vezes em que o dito ficou pelo não dito e fecharam-se os ouvidos para as palavras dos especialistas que avisaram sobre a inevitabilidade dos aumentos. Por mais que a palavra de Lula venha sendo quebrada sistematicamente, por menos que o presidente seja digno de credibilidade, seu capital ainda é grande o bastante para que as pessoas se deixem enganar. Uns por preguiça, outros por bajulação, alguns por falha de memória, vários por oportunismo, muitos porque ainda levam a sério o significado das palavras tal como definidas no idioma português, poucos por ingenuidade. A oposição, por exemplo, resolveu fazer de conta que havia mesmo fechado um compromisso com o Palácio do Planalto para uma saída negociada pós-CPMF, de preferência com cortes de gastos por parte do Executivo. Na verdade, estava louca para aprovar a Desvinculação das Receitas de União (DRU), entrar em férias e passar a virada do ano recebendo cumprimentos pela “coragem” de fazer seu papel de se opor. Nunca acreditou em acordo até porque, como disse o próprio articulador oficial, José Múcio Monteiro, logo após assumir em substituição a Walfrido Mares Guia, a origem de todos os males do governo no Congresso sempre esteve na indiferença aos compromissos. O presidente Lula deu inúmeras provas disso ao longo de seus cinco anos de governo, sendo a mais recente delas a promessa de enviar a reforma tributária ao Legislativo, feita num dia e quebrada na semana seguinte. Desta vez, ao histórico de imposturas somou-se o desmentido ao porta-voz da única verdade oficial dita a respeito do assunto nos últimos dias de 2007: o ministro da Fazenda, Guido Mantega, desautorizado em público por ter confirmado em entrevista ao Estado que haveria compensação tributária à CPMF. Dizia a verdade, mas fugiu ao combinado de deixar o País passar Natal e Ano-Novo na ilusão de que o governo saberia administrar a adversidade com categoria. O ministro, no entanto, recuperou-se rápido e já no primeiro dia útil de 2008 adaptou-se ao espetáculo do fingimento com uma performance de não deixar a dever nada a ninguém, com a já notória homenagem ao cinismo de ponta ao justificar que a “promessa” sobre os impostos só valia para 2007. Com essa, conseguiu não perder nem para o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, para quem não houve pacote, mas apenas “medidas”. É de autoria de Bernardo também a alegação de que a ampliação do Bolsa-Família feita por medida provisória nos últimos dias de 2007 não fere a proibição de concessão de benefícios oficiais em ano eleitoral porque foi assinada “no ano passado”. Um truque. Se quisesse apenas beneficiar os desvalidos o governo poderia ter baixado a MP longe do período proibido. Mas aí não obteria o efeito eleitoral desejado para seus candidatos nas eleições municipais. Um lance muito bem montado, digno de nota no quesito jogo político, não fora o fato de significar um embuste. Difícil de ser desmontado pela oposição que, se quiser contestá-lo na Justiça, tem boas chances de ganhar, uma vez que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio Mello, já abriu a porta qualificando a MP como ilegal e eleitoreira. O problema é que o gesto é antipático e eleitoralmente arriscado, caso a oposição ainda nutra alguma esperança de pescar votos do eleitor do assistencialismo. Trata-se de uma decisão difícil, o governo sabe e por isso fez o que fez, acostumado que está a se valer da ignorância para enganar, burlar e depois invocar o direito de reinventar a realidade, mudando o nome das coisas, chamando enganação de mudança de opinião. Agiu assim desde o começo, firmou um padrão, incorporou a mentira ao modo de governar e se relacionar com a sociedade e as instituições ao ponto de a agressão à verdade não representar mais riscos políticos nem servir à denúncia de conduta indevida. E porque fez da mentira um hábito, o governo não vê insulto nem se defende quando chamado de mentiroso. Aceita a constatação e vive feliz com isso, livre, dando asas às artimanhas e ao seu dom de iludir oficial, solene e honorificamente. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, janeiro 08, 2008
Dora Kramer - O espetáculo do fingimento
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