Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 05, 2008

Desejo e Reparação, com Keira Knightley

Num certo dia de verão

No magnífico Reparação, o escritor Ian
McEwan constrói uma tragédia na confluência
de um punhado de pequenos acontecimentos.
Parece milagre, mas a adaptação faz jus ao
seu brilho


Isabela Boscov

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Um dos livros mais extraordinários da última década, Reparação, do inglês Ian McEwan, começa por tratar das pequenas coisas que estão se passando numa mansão no campo, num dia de verão de 1935, e de como elas levam Briony Tallis, de 13 anos, a contar uma mentira grave. Daí para a frente, McEwan desenha os círculos que se espraiam a partir dessa mentira através das décadas. Ela moldará a vida de Briony até a velhice. E será não apenas a razão das tragédias que se abaterão sobre duas outras pessoas, como a pior dessas tragédias, sempre. Publicado em 2001, o romance é um feito de narrativa e estrutura: lança um olhar arguto e original sobre o ponto conflagrado em que o sentimento pessoal e as convenções de classe colidem. E, mais do que qualquer outro, dialoga com toda a grande tradição literária britânica e a estende até o presente. Reparação é, enfim, um colosso, e só isso bastaria para cercar de suspeitas sua adaptação como um muito assumido filme "de Oscar". Mas Desejo e Reparação (Atonement, Inglaterra/França, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país, é uma boa notícia. Na verdade, considerando-se tudo em que poderia errar, é uma ótima notícia: cumpre os cuidados obrigatórios do gênero com o figurino e a direção de arte, sem nunca perder de vista a riquíssima matéria-prima em que se baseia.

Divulgação
Briony (Saoirse Ronan): como aspirante a escritora, ela observa, interpreta – e distorce


Dirigido pelo inglês Joe Wright, que há dois anos fez um excelente trabalho com o Orgulho & Preconceito de Jane Austen, Desejo e Reparação começa acelerado. Briony (Saoirse Ronan), uma petulante aspirante a escritora, lateja de frustração por perceber que não vai conseguir encenar para a família a sua primeira peça, e também de ressentimento – da janela de seu quarto, ela vê a irmã mais velha, Cecilia (Keira Knightley), se despir para entrar numa fonte diante de Robbie (o esplêndido James McAvoy), o filho da governanta, por quem a menina alimenta uma paixonite. Briony entendeu, da cena, mais do que gostaria de ter entendido; mas não tem maturidade para compreender sua essência. A partir daí, enquanto a trilha sonora acentua a fúria crescente de Briony, todos os outros elementos que estão em jogo nesse dia começam a confluir em sua visão distorcida. Do amigo da família que está de olho – e mãos – em quem não deveria a uma carta que nunca deveria ter sido entregue, o caos vai se avolumando e se precipitando. Cecilia e Robbie serão engolidos por ele; e Briony passará o resto da vida buscando alguma forma de reparação (o "desejo" do título brasileiro é perfeitamente gratuito) pelo crime que cometeu.

Ian McEwan é um mestre dessas guinadas do prosaico para o incontrolável, e o diretor Joe Wright faz jus a ele, ponto por ponto, nesse primeiro ato admirável. No segundo ato, em que Briony trabalha como enfermeira de guerra enquanto Robbie padece no front, as emoções são mais convencionais do que aquelas evocadas pelo escritor. Ainda assim, Wright se sai com uma seqüência épica da evacuação das tropas britânicas de Dunquerque, em que, em quase dez minutos sem cortes, compõe um diorama do horror da guerra. No terceiro e derradeiro ato, Briony, agora com 77 anos e interpretada por Vanessa Redgrave, volta a se expor como uma narradora das menos confiáveis – mas por motivos opostos aos que a moveram naquele dia de 1935. Reparação é todo construído em torno do ato de observar, interpretar e registrar – o ofício básico de um romancista –, e filmes quase que invariavelmente falham nesse tipo de transposição. Desejo e Reparação é uma bela exceção. Por pouco, muito pouco, não é tão arrebatador quanto o texto em que se inspira.

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