Suave não é a noite
sinopse
Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
A questão não é se a adaptação é fiel ou não ao original. No caso, ela é bastante fiel, quase cena a cena, exceto por algumas inversões de seqüência (como a do chafariz, que no filme se passa primeiro na visão da menina). A questão é como ela pode ser fiel. Há uma diferença essencial: o livro é todo conduzido por Briony; é por sua voz que somos dados a conhecer as diferentes versões de cada um dos três episódios que testemunhou quando tinha 13 anos. No filme, não há narração em "off"; tudo é apresentado objetivamente. Não que o "off" fosse substituir o efeito da palavra escrita, mas tirar de Briony o papel de protagonista traz muitas conseqüências.
A principal perda se nota na segunda parte, embora as cenas de guerra sejam bonitas e impressionantes. Ali somos afastados do olhar de Briony e o filme parece perder o pique, parece se arrastar na grandiosidade das imagens. É como se o cineasta quisesse fazer um filme romântico que a história não lhe permite. No livro, somos informados de uma série de características de Briony, como sua obsessão pela simetria. Ela não é uma pessoa como qualquer outra, tomada de um desejo incontrolável que depois tenta expiar; é uma escritora com pretensões a ordenar moralmente o mundo, não apenas esteticamente. Outro equívoco que me afligiu é a música, sempre altissonante e pleonástica, como se quisesse encobrir a ironia amarga que dá tom ao livro.
Afinal, não se sabe bem o motivo que leva Briony a afirmar, no depoimento, ter visto o que não viu nitidamente. Em parte é a paixão pelo rapaz, com o medo e a ingenuidade que implica; em parte é a ambição de dominar a realidade pelo verbo, de aceitar o encaixe conveniente dos fatos. A atriz que faz a menina, Saoirse Ronan, passa essa ambivalência com grande talento. Os atores todos, como Keira Knightley, James McAvoy e Vanessa Redgrave (como Briony idosa em entrevista à TV e projetando em seu rosto a decepção consigo mesma sem abandonar um toque de orgulho), estão ótimos e sustentam a riqueza sutil do livro. Para mim, a melhor cena é a da biblioteca, quando o erotismo e o constrangimento da situação se sucedem com grande senso de tempo.
Como diz a epígrafe de Jane Austen, de quem Wright adaptou Orgulho e Preconceito com a mesma eficiência e insuficiência, os seres humanos se portam como "espiões de seus vizinhos", invejando suas felicidades e, no entanto, esperando o menor passo em falso para se reassegurar de sua suposta superioridade. Austen, em outras palavras, deu um tapa com luva de renda na face da sociedade de sua época e de todas as épocas. Pena que o cinema tantas vezes insista em dourar com a embalagem do sentimentalismo a crítica que os grandes autores fazem à humanidade.
Em Meu Nome não É Johnny, de Mauro Lima, filme que aparentemente nada tem a ver com Reparação, é também a vontade de suavizar a realidade o que impede que ele não nos cause tantas dúvidas. Uma boa história e um ótimo ator parecem bastar à maioria, mas o olhar que importa não é o passivo. Pelo que percebi na sessão a que fui, metade da platéia sai com a sensação de ter visto um filme divertido, "levinho"; a outra metade sente o impacto de um mundo que não conhece bem, mas acredita que João Estrella seja um caso raro. A discussão sobre o tema do filme, nos dois casos, não vai além da superfície.
Conheci alguns Johnnies na vida. São sujeitos que vivem numa agitação constante para disfarçar os problemas e encontram no lucro rápido das drogas a dinâmica perfeita, recolhendo dividendos em forma de sexo, status e alienação. João Estrella não vira traficante só porque o pai é omisso e autodestrutivo e a mãe inocente, como sugere a psicologia simples do filme, ou porque pertence a uma geração que fez da balada sua ideologia. Ele sabe o que escolheu, embora no depoimento crucial diga à juíza que não. Me pergunto se caso ele fosse pobre e negro ela daria a mesma pena branda - o que o filme não se pergunta.
É claro que ele não se tornou um chefe de quadrilha como os Fernandinhos e Abadías que vemos, mas também não é um simples consumidor desencaminhado. Se, como alega seu advogado, não juntou patrimônio, é porque o cafungou inteiro. Com o grande número de cenas e figuras cômicas e o tratamento musical, como o da hora de sua prisão, o filme termina reforçando essa imagem complacente. Isso não quer dizer que não seja muito interessante, com seqüências impagáveis como as de Veneza, e que Selton Mello, com um jeito veloz e displicente de falar coisas engraçadas à Luiz Fernando Guimarães, não tenha um desempenho de primeira. Mas as questões morais são assim, cobertas de asperezas.
RODAPÉ (1)
Eu queria entender por que os jornais e revistas não dão nem meia página para um livro como Alan Turing - O Homem Que Sabia Demais, que comentei na semana passada, mas têm sempre páginas e páginas disponíveis para qualquer coisa que diga respeito a Sartre, Simone de Beauvoir ou Camus. Claro, são autores interessantes, influentes no comportamento moderno, e suas contradições estão longe de esclarecidas. Mas não custa lembrar que há autores bem melhores, na ficção e na filosofia, e observar que a ciência não pode ser desprezada.
Em Camus e Sartre (editora Nova Fronteira), o professor americano Ronald Aronson tem um ângulo de abordagem muito promissor: o fim da amizade entre os dois escritores depois da 2ª Guerra Mundial. Camus era bonito, jogava futebol, era ficcionista nato e também um racionalista, incapaz de aderir a ideologias totalizantes; Sartre era feio, escrevia livros complicadíssimos, sua ficção não conseguia sair do plano das idéias e, embora dissesse que o ser humano é "condenado à liberdade", defendeu os regimes de Stalin e Mao. Mesmo assim, a simpatia de Aronson é claramente dada a Sartre. Sim, Camus errou ao criticar a independência argelina. Mas os erros de Sartre foram bem maiores.
RODAPÉ (2)
Recebo via Amazon dois bons livros importados que tratam do prazer da leitura: Classics for Pleasure, de Michael Dirda (Harcourt), e Literary Genius, editado por Joseph Epstein (Paul Dry Books). Epstein, que escreve sobre Henry James, reuniu grandes ensaístas para tratar dos clássicos anglo-americanos, como John Simon sobre T.S. Eliot, Elizabeth Lowry sobre Conrad e Hilary Mantel sobre Jane Austen. O livro melhor é o de Dirda, que analisa de Safo a James Agee, de Beowulf a Eça de Queirós. No Brasil, quando alguém diz que sentiu "muito prazer" ao ler, digamos, Diderot, soa como um blasfemo consumista, como se cultura e mercado fossem contradições insolúveis...
POR QUE NÃO ME UFANO
Comentando a crise de energia elétrica e o surto de febre amarela, Elio Gaspari mostrou que o governo Lula faz o "jogo do contente", fugindo à responsabilidade de responder como se deve aos problemas. Bem, o governo faz esse jogo desde que existe. Foi assim no apagão aéreo, foi assim na denúncia do mensalão, foi assim na votação da CPMF: tudo é menor, produto de fatalidades ou de erros perdoáveis, coisa pouca perto das grandes realizações de Nosso Guia... Mais uma vez, ele, que se esforça tanto em se declarar uma novidade depois de 500 anos de mesmice, não poderia ser tão parecido com tudo que o antecedeu. É personalista, leniente e hipócrita como qualquer outro governante desde os tempos da capitania hereditária.
Por falar em capitania hereditária, quer história mais sintomática do que a do senador sarneyzista Edison Lobão, sobre cujo filho paira uma tempestade de suspeitas? Edison Lobão Filho, por essas maravilhas do sistema político brasileiro - aquele que Lula prometeu que reformaria em seu segundo mandato -, vem a ser suplente do próprio pai... E esse pai foi ocupar uma vaga no Executivo, exatamente onde? No Ministério das Minas e Energia, assunto do qual nada entende, não tendo nem ao menos um preparo intelectual para dialogar com os especialistas da área. Por que não o põem na Saúde, então, para cuidar dos casos de febre amarela que o atual ministro desdenha como "isolados"?